sábado, 23 de outubro de 2010

O Crime de Aldeia Velha

“O crime de Aldeia Velha” é uma peça de teatro de Bernardo Santareno, hoje um nome pouco sonante fora  do meio teatral, mas um importante dramaturgo português no séc. XX. A maioria das suas peças levadas a cabo sob ditadura foram censuradas. Uma das mais famosas será eventualmente A Promessa, representada pela primeira vez a 23 de Novembro de 1957 no Teatro Sá da Bandeira, no Porto e reposta a 11 de Maio de 1967 no Teatro Monumental de Lisboa. Uma obra que segue a tendência de outros autores cuja corrente artística neo-realista era fortemente apoiada por ideais políticos de esquerda, tais como Frederico Garcia Lorca ou Manuel da Fonseca. A Promessa é uma obra também relacionada com a experiência do autor no meio piscatório. A peça foi adaptada a cinema por António de Macedo em 1973.

Antes desta adaptação, contudo, já tinha sido feita outra adaptação a cinema de uma das suas peças. Em 1964 Manuel Guimarães fazia a adaptação de “O Crime de Aldeia Velha” para o grande ecrã. Nesta obra, tal como em “A Promessa” o paganismo mesclado com cultura religiosa surge como temática central e as personagens, assim como os seus actos são analisados à luz destes preceitos. É possível estabelecer uma correlação entre as suas peças e a tragédia clássica, na sua forma de reinventar episódios mitológicos analisados à luz de motivações psicológicas e sociais.
Se em “A promessa”, os santos eram encarados como deuses pagãos relacionados com a mitologia marítima, já em “O crime de Aldeia Velha” a correlação mitológica é mais complexa e centra-se não na protecção ou salvação mas na expurgação do mal.




O ponto de partida para a sinopse baseia-se na personagem da Joana interpretada pela belíssima Bárbara Laage. Joana é uma jovem atraente residente numa aldeia do interior e a sua sensualidade estimula desejos e invejas. Destes desejos e destas invejas dão-se consequências maiores, o que leva grande parte da aldeia a acreditar que Joana é, no fundo, uma feiticeira possuída pela Coisa Ruim, o Belzebu, o Senhor das Trevas ou, mais corriqueiramente, pelo Diabo. Apesar de aparentemente se basear numa personagem tipo representante da mulher fatal que despoleta a inveja e a competição de pretendentes, a personagem de Joana é, ainda assim, mais complexa do que isto.

Apesar de constantemente perturbada pelos seus pretendentes, Joana dá uma atenção particular a Rui que, tal como ela, também tem uma popularidade privilegiada. O que acontece é que ela se deixa envolver de forma pouco inocente em esquemas de manipulação psicológica e sentimental que acabam por levar à tragédia da aldeia, quando os seus dois pretendentes se debatem numa esgrima de machados até à morte. Devo dizer que para um filme português dos anos 60 que decorre numa aldeia no interior, é uma luta de machados com uma qualidade fenomenal, qual Huen Chiu Ku de Marco de Canaveses. Entretanto surge um novo padre que é um jovenzinho (é o pior actor do filme) e que, como jovem moço que era, não conseguiu ficar indiferente aos esmerados atributos da Joana e também ele fica apanhadinho. Isto não agrada nada às beatas velhinhas que sempre acharam que aquela Joana tinha o estatuto de feiticeira-mor cujo poder advinha de um pacto com o Demo, suspeita realçada quando a Joana põe o senhor abade todo maluco.
Neste vídeo do youtube com a abertura do filme é possível ver as senhoras da aldeia naquela que é a tentativa de exorcizar um jovem rapaz "enfeitiçado" pela Joana. O futuro dele acaba, contudo, por não ser muito perceptível.
Outro factor que atiça o clima de desconfiança da população está relacionado com um bebé que fora deixado aos cuidados de Joana e que, passado algumas horas de contacto com a jovem, padece de uma febre fatal.

Para concluir o resumo da história, a Joana é condenada pela justiça popular à exorcização pela fogueira.

Esta história é baseada num caso real sobre o linchamento pelo fogo de uma rapariga supostamente possuída pelo demónio, ocorrido durante os anos 30 em Marco de Canaveses. Apesar da linha neo-realista da obra original e da própria realização, o filme ganha todo o seu charme nos momentos fantasmagóricos, com visões de feiticeiras nuas em cima de cavalos e cadáveres pendurados em árvores. A banda sonora também está muito bem. A história original em si leva-nos à dúvida e ao questionamento do papel da Joana. Embora seja facilmente perceptível a dura crítica à mentalidade hipocritamente religiosa e intrinsecamente pagã das aldeias, a personagem da Joana não é absolutamente óbvia na sua inocência. Em livro, teatro ou cinema, uma obra sobre os limites da clarividência (ou falta dela) das devoções. E um obrigada à RTP Memória! 


3 comentários:

Ubik disse...

Muito interessante...
Escreve mais, por favor!!!

Pedro Cunha disse...

Já fiz essa peça :)

Sara F. Costa disse...

Obrigada, Ubik. Vou tentar dar mais atenção a este espaço.

Pedro, que personagem interpretaste?