terça-feira, 27 de novembro de 2012

Miguel Gonçalves e o empreendedorismo de cordel

Como dizia o meu Professor José Manuel Pureza, citando um amigo "Confiança é acordar todos os dias e achar que a troika está mesmo a ajudar o país." Ámen


Miguel Gonçalves é um fulano com o QI de uma ervilha que anda a vender cursos de auto-estima de empreendedorismo de cordel. Organiza uma treta tipo the biggest looser mas para criação de empresas que até agora nunca ninguém ouviu falar, tipo vencedor dos ídolos, alguém vai ser o próximo ídolo de Portugal mas passadas várias edições nunca ninguém ouve mais falar dos vencedores. É o aproveitamento do desespero. É isto e a ACN. O problema é conhecê-lo pessoalmente e saber o quão  néscio é o sujeito. E não estou para usar argumentos requintados. É um parolo de primeira.

Já tive oportunidade de falar sobre as influências de grupo numa reflexão mais ampla posts abaixo.

Já participei numa formação de "coaching" no âmbito de um curso de Recursos Humanos e Organização Empresarial, eu pessoalmente saí com vómitos depois daquela pseudo-formação para nos tornarmos gurus da auto-estima mas no campo do empreendedorismo de cordel. Acho fabulosos os casos de sucesso que o jornalismo traz para as reportagens sobre artesanato e confeção de bolos. Pensar em criar consciência política e económica é demasiado arriscado para o plano neo-liberal do norte. Vamos pôs uns pins nuns calções e vender num blog e ser empresários. 

Cito alguém que se expressava no Facebook deixando a sua identidade anónima:

"O Charlatão de Braga ganhou o seu documentário messiânico na SIC. O Poder do empreendedorismo com sotaque de Minhoto esconde mal a realidade de um estudante de psicologia a surfar na onda do coaching de banalidades num país devastado pela falta de emprego. A Proximidade e conhecimento mais pessoal que tenho deste individuo fazem-me de facto pensar na forma como a televisão pode criar ídolos e colocar na ribalta os arrivistas mais vulgarmente pintados pela simples necessidade de preencher a lista de rótulos. São estes despertares que de facto nos desligam dessa assimilação inquestionável da narrativa da comunicação social e nos obrigam a questionar mais aquilo que aceitamos sem nos apercebemos. Questionem-se, fora os políticos, quais são as personalidades questionadas sobre as palavras que formulam?"




domingo, 4 de novembro de 2012

“Heart of darkness” de Joseph Conrad



“Heart of Darkness” de Joseph Conrad, publicado em três fases durante o início do século XX, é um livro razoavelmente curto mas canónico na tradição literária dita ocidental.
            Às multiplas camadas de narrativa junta-se uma linguagem visceral frequentemente sensorial e que nos descreve um universo pouco colorido, dir-se-ia mesmo um universo onde a luz é inetivalmente absorvida. Para além das qualidades literárias intrínsecas da forma, o impetuoso simbolismo da mensagem justifica esta canonização. Esta jornada a lugares considerados exóticos não ganha proporções épicas mas antes ilustra o nengrume presente na perceção de Marlow face ao conhecimento de um mítico reinado instaurado por “Kurtz” um homem “de elevado gosto e espantosa eloquência”. 
Heart of Darkness é baseado numa jornada do próprio Joseph Conrad ao Congo como comandante marítimo.Em 1878, as entidades belgas que colonizavam o Congo com pretextos supostamente filantrópicos para o desenvolvimento rural anunciam a criação de um novo estado, o Estado Livre do Congo. Na realidade, tudo não passava de um esquema montado por Leopoldo II para a exploração do marfim. O povo local era sistematicamente roubado, escravizado e sujeito a trabalho forçado nas minas. Aqueles que não trabalhassem devidamente eram punidos com amputações de membros. Centenas de milhares de escravos morriam devido a exaustão, doença ou fome.

Grande parte do interesse da obra de Conrad deve-se ao seu enquadramento temporal. Em 1902, o termo “racismo” não tinha sequer uma conotação pejorativa. No entanto, no seu livro encontramos o narrador Marlow a refletir várias vezes sobre a possível humanidade presente “naquelas criaturas”:They were not enemies, they were not criminals, they were nothing earthly now, nothing but black shadows of disease and starvation, lying confusedly in the greenish gloom. (Conrad 14)
O reino de Kurtz, instaurado sobre o pretexto de uma suposta civilização dos povos face à presumivel superioridade europeia torna-se num conto fantasmagórico na qual o conceito de civilização é invertdo. Perante a ausência de lei, o reinado que Kurtz pensava controlar estava antes a controlá-lo a ele num ilusionismo febril. Fora do seu estado de princípios, Kurtz implementa o mais primitivo dos sistemas mas considera-se a ele superior porque a lei dos homens não se confunde com a lei primitiva da natureza. Contudo, é do reconhecimento dos ocupantes de que “ali não há leis” e que“podemos matar se necessário”.  A selvajaria é assim instaurada pelos mensageiros da civilização, por homens brancos de estados hegemónicos.
Este regresso à selvajaria relembra outro clássico, o posterior “Lord of the flies” de William Golding. Em ambas as obras a reflexão sobre civilização e selvajaria demonstra que a assunção de superioridade cultural e civilizacional é facilmente posta em causa aquando da ausência de regulações e imperativos externos. A terra de ninguém é assim a terra da lei do mais forte.
A viagem ao coração das trevas é na realidade uma viagem ao lado mais sombrio do coração humano.



Conrad, Joseph, Heart of Darkness, first published in 1902, published in Penguin Classics1994

sábado, 3 de novembro de 2012

A paz e a violência


A paz e a violência de acordo com a tradição moderna






A solidez do sistema internacional depende em larga medida da eventualidade de um confronto ou da possibilidade da manutenção da paz. Para Donald Kagan, de acordo com uma análise histórica comparatista que levou a cabo, a guerra é o resultado de uma competição pelo poder. Contudo, o conflito não se pode reduzir exclusivamente à competição, uma vez que ele ocorre efetivamente quando uma parte pretende alcançar os seus objetivos prejudicando a outra.  
A noção de conflito foi muitas vezes enunciada numa narrativa que tende a cair numa abordagem realista e Hobbesiana que relata um ciclo conflituoso e, consequentemente, uma narrativa do conflito. Na perspectiva de Maria Raquel Freire e Paula Duarte Lopes “This narrative confines and directs strategies, instruments and actors to conflict. For peace studies, violence is the problem, but if the framework of action is bounded and rooted in conflict, the outcomes can hardly be framed outside a conflict-oriented narrative”. [i]
O discurso do conflito tende, portanto, a substituir o discurso da violência. Isto é, a violência deve ser encarada como um continuum. Esse continuum de pazes e violências possui um carater facultativo, depende de uma escolha de implementação de uma ou outra cultura, sendo a cultura da paz o objetivo primordial como “a virtue, a state of mind, a disposition for benevolence, confidence, justice” nas palavras de Baruch Spinoza (1670).
Neste ensaio pretendo analisar as conceções de paz e violência à luz das teorias dominantes das relações internacionais, as quais intitulei de “tradição moderna”.
Se, por um lado, o tratado de Vestefália conferiu aos estados um papel central e soberano na compreensão das relações internacionais, por outro, os estudos da paz colocam em causa esse consenso da elaboração do terreno pacífico como aquele que apenas é intrínseco ao sistema estatal.
Refiro-me a consenso porque essa definição é transversal às duas principais correntes da tradição moderna das Relações Internacionais: o realismo e o liberalismo. Estas duas escolas de pensamento continuam a oferecer perspetivas acerca do comportamento dos estados e respetivas consequências na manutenção da paz.

Por um lado, os liberais advogam a liberdade individual, acreditando na conceção rousseana de que os homens são bons por natureza. O foco principal reside assim no individualismo, nos direitos humanos, na universilidade, no desapego à autoridade, no tratamento igualitário perante a lei e na liberdade pela ação social. Mantém um elevado nível de otimismo e confiança. Intimamente relacionada com a teoria liberal encontra-se a teoria da paz democrática e a crença nas democracias representativas. Várias teorias liberais apontam ainda para a relação da paz com o crescimento económico e defendem vincadamente a liberdade para a ação económica independente de qualquer interferência do estado (Fukuyama, 1992, p.44). A paz é nesta perspetiva descrita por Oliver P. Richmond como refletindo o pensamento Augustiano da “tranquilidade da ordem”, realçando a contradição Hobbesiana em conter o estado natutal do homem e realçando o projeto enunciado por Quincy Wright, para quem a paz é representada por um comunidade onde a lei e a ordem prevalecem.[ii] Para além do mais, a paz liberal reclama para si o estatuto de ideal platónico que dá a forma a um imperativo kantiano.
Por outro lado, a proposta realista assume uma visão mais pessimista em relação à natureza humana. Ainda Oliver P. Richmond na sua “epistemologia negativa” refere-se à corrente realista concebendo a paz como episódica, momentânea. Realça ainda que a paz só é paz para o vencedor e que esta só é alcançável pela hegemonia e garantida pela força. Paz é neste sentido uma expressão de poder. É muitas vezes referida como uma paz negativa, uma vez que a sua definição se prende com o silêncio das armas, isto é, a ausência de conflito aberto. Grandes vultos do realismo dos anos 40 e 50 do século XX chegam mesmo a estar filiados a uma visão marxista da sociedade.
O continuum de pazes e violências deve assim ser gerido de forma a evitar o confronto, ou seja, a guerra. Um dos grandes desafios dos teóricos, realistas, liberais ou neo-neo é o de tentar decifrar no tecido heterogéneo da história padrões explicativos das causas de conduzem à guerra.

Apesar de todos os debates e divergências teóricas em torno destas correntes, elas acabam por convergir quanto à assunção estato-cêntrica das relações internacionais. Todas encaram os estados como unidades pacíficas e o campo externo, o território internacional como o domínio da guerra, aquele onde não existem contratos sociais e onde o caos e a anarquia predominam. Esta é a raiz comum destes dois pensamentos, aquela em que a política como paz se opõe às relações internacionais como guerra.  
Os estudos da paz, no entanto, demarcam-se desta tradição moderna, recusando assim a aceção de que a condição humana nos entrega a um estado de conflito permanente. Este tipo de pensamento comum a Hobbes, Rosseau, Voltaire e Kant remete-nos para o princípio de que se todos aspiramos ao mesmo, então a possibilidade de conflito é infinita. 
Quando Johan Galtung menciona o triângulo da violência e da paz[iii], encontramo-nos perante uma abordagem que é transnacional, isto é, os estudos da paz distinguem-se dos estudos da segurança e estratégia por estes terem a premissa de que a guerra e o conflito são uma constante a ser gerida e mitigada.




Na obra de Kenneth N. Waltz, Man, the State and War, o autor refere três níveis de análise recorrentes no estudo das causas da guerra. A primeira prende-se com aqueles que procuram a explicação da guerra na natureza humana. Na segunda procura-se uma explicação que atravesse a estrutura interna do estado sendo possível incluir neste grupo os liberais e os marxistas-leninistas. Os primeiros por acreditarem, como já mencionado, que a democracia conduz à paz e os segundos por acreditarem que é a ideologia socialista que conduz à paz enquanto o capitalismo fomenta a guerra. O terceiro nível de análise é aquele muitas vezes incorporado no neo-realismo, já supramencionado que encara o sistema internacional como anárquico, carente de organização que torna a expectativa de guerra uma inevitabilidade. As teorias de Waltz baseiam-se na terceira imagem e também elas transcendem a organização essencialmente estato-cêntrica do panorama internacional. Isto porque, por exemplo, o comportamento criminal de indivíduos isolados pode ser considerado uma forma de conflito violento. As ideias de Waltz vão neste sentido ao encontro da noção de que a paz é um processo holístico passível de existir quando condições básicas se encontram asseguradas. Para além disso segue as mesmas diretrizes do ensaio de Freire, M. R. And Lopes, P. D., pois encara o processo da promoção da paz, construção da paz e manutenção da paz como uma rede interdependente mas não como uma premissa sequêncial que segue uma única direção. O continuum de pazes e violências pode estar apresente até em contextos formais de paz. O conflito não tem porque se transformar em conduta violenta e pode ser prosseguido por meios políticos, económicos, psicológicos e sociais menos evidentes.
Tendo já enquadrado a perceção da paz nas diferentes abordagens teóricas, debruçar-me-ei sobre uma análise fugaz a alguma formas associativas da violência. Como já mencionado, a violência deve substituir a noção de conflitualidade típico à narrativa do conflito. Podemos, contudo, falar de uma abordagem cultural à violência. Quando Huntington escreve “O Choque de Civilizações” promove uma ideia que se baseia no confronto inevitável do Homem devido ao seu crescimento civilizacional isolado, estando esta matriz civilizacional relacionada segundo os teóricos do choque essencialmente com os valores religiosos dos vários povos. Vários críticos da teoria do choque de civilizações realçaram o carater anti-humanista da teoria. A história legitima a vontade genuína da aproximação das civilizações mais do que do seu choque. Desde Marco Polo e as suas longas viagens pela compreensão humana até aos missionários italianos e portugueses que tentaram encontrar pontes de ligação entre o cristianismo e o budismo no sul da China, as civilizações tendem para um entendimento mais do que para o confronto,  ainda que possamos considerar que a insatisfação generalizada possa conduzir a uma elevada suscetibilidade à propaganda e isso provoque confrontos como os ocorridos entre muçulmanos e hindus no anos 40 do século XX e ou Sérvios e Albaneses na antiga Jugoslávia.
Amartya Sen em “Violence, identity and poverty” trata desta abordagem teórica à violência pelo choque de civilizações mas relaciona outro fator de relevo, o económico. De facto, negar a associação da violência a contextos de exclusão social e económica torna-se uma tarefa difícil. O deterioramento do estado social encontra-se muitas vezes relacionado com o aumento dos níveis da criminalidade. Quando no início de Março do ano passado a primavera árabe ou a revolução do jasmim, como lhe chamaram os tunísios se deu, podemos afirmar que não foi exclusivamente devido a um choque civilizacional de cariz religioso mas antes uma sucessão de protestos relacionados com as condições de vida das populações de vários estados árabes. O fenómeno das favelas ou dos estados-satélite no Brasil onde o crime organizado se instalou de uma forma quase impenetrável, torna possível associar os estados de violência aos elevados níveis de pobreza e de profundo contraste social presentes nestes espaços. Claro que estes motivos não se podem valer por si só e muitas implicações sociologicas, políticas, factores sociais e culturais ajudam a agravar cada situação, salvaguardando toda a sua especificidade – isto porque o discurso da relação pobreza com violência pode conduzir a um uso manipulatório da retórica política, tentando apelar ao medo da violência dela proveniente e não aos valores éticos que em si encerram estas situações. Sen dá-nos o exemplo de Kolkata onde as elevadas taxas de pobreza não conduzem necessariamente a estados agravados de violência.  
A paz e a violência adquirem diferentes formas de acordo com os diversos enquadramentos teóricos e os diversos factores de análise. Os estudos da paz devem por isso refletir sobre o seu propósito e tentar transpôr a tradição, numa tentativa de enquadramento da definição da paz numa altenartiva pós-moderna, transversal e transnacional.





[i] Freire, M. R. And Lopes, P. D. (2009) “Rethinking Peace and Violence: New Dimensions an New Strategies”, in P. D. Lopes and S. Ryan (eds.) Rethinking Peace and Security: New Dimension, Strategies and Actors. Bilbao: University of Deusto, 13-29
Fukuyama. F. (1992) The end of history and the last man. New York: Macmillan, Inc.
[ii] Richmond, O. 2006, “The problem of peace: understanding the “liberal peace””, Conflict, Security & Development, 6(3), October 2006.
[iii] Johann Galtung define a concomitância de uma violência cultural (produção de ideias justificativas das demais violências) com a paz cultural (cooperação e comiseração com todas as formas de vida); da violência direta (eliminação física do outro) com a paz direta (formas de controlo não-violentas, com sanções positivas); e da violência estrutural mecanismos sistémicos de injustiça e morte) com a paz estrutural (satisfação das necessidades básicas e distribuição de bens e serviços);


Referências
Galtung, J. (1969), “Violence, peace and peace research”, Journal of Peace Research, 6 (3), 167-191
Hobbes, T. (1985). Leviathan. London: Penguin Classics
Huntington, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial, Objetiva, 1996
JAMES, E./PLATZGRAFF, Robert, As Relações Internacionais: as teorias em confronto, Lisboa, Gradiva, 2003.
Jehangir, Hamza, (2012) Realism, Liberalism and the Possibilities of Peace, e-International Relations http://www.e-ir.info/2012/02/19/realism-liberalism-and-the-possibilities-of-peace/ acedido a 23 de Outubro de 2012
Kelsen, H. (1944), Peace through law, Chapel Hill: University of North Carolina Press (trad. castelhana pubicada em Madrid: Editorial Trotta, 2003) 
Kagan, Donald, On the Origins of War and the Preservation of Peace, Nova Iorque, Doubleday, 1995, pp. 1-11 e 569
Richmond, O. (2008), “Marxist agendas for peace: towards peace as social justice and emancipation”, in O. Richmond, Peace in International Relations. Londres: Routledge, pp. 58-72
Sen, A. (2008) “Violence, identity and poverty”, Journal of Peace Research, 45 (1), 5-15.
Spinoza, Baruch,  Theological Political Treatise, 1670
Waltz, Kenneth N. Man, the State and the War: A Theoretical Analysis, Nova Iorque, Columbia University Press, 1959, caps. 2 e 4 Waltz, Kenneth (1967), “The politics of peace”, International Studies Quarterly,  11 (3),  pp. 199-211
Wiberg, H. (2005), “Investigação para a paz: passado, presente e futuro”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 71, 21-42.