quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Joseph E. Stiglitz na Fundação Calouste Gulbenkian, 1 de Dezembro de 2015

“Desigualdade num mundo globalizado” 

O Nobel da economia esteve ontem em Lisboa perante uma plateia repleta para falar à sociedade civil acerca da sua principal tese: a desigualdade enquanto escolha. Ou seja, a desigualdade enquanto opção política e não como uma inevitabilidade do sistema económico. Há um espectro de políticas macroeconómicas que contribuem para a desigualdade. 

O caso dos EUA é flagrante na desigualdade da distribuição da riqueza e o que se torna estranho é verificar a reprodução do modelo americano, por exemplo, na Europa. Nas múltiplas dimensões da desigualdade o poder económico acumula-se no topo, os níveis de pobreza aumentam e a classe média é esviscerada. As desigualdades traduzem-se no acesso à saúde, sobretudo em países com sistemas nacionais de saúde elitizados como os EUA e traduz-se também no fragmentado acesso à justiça. Essa (in)justiça é facilmente relatada em números – como é que num país com 5% da população mundial, se encontra 20% da população prisional no mundo?



“Justice for all who can afford it”, dizia Stiglitz ontem. E se essas desigualdades faziam parte de um sistema dividido pela natureza e se acreditava que a geração seguinte ia sempre ter mais sucesso económico que a anterior, como é que se justifica que o mundo ocidental se encontre em recessão há já duas gerações? Os contos de histórias de sucesso pelo trabalho árduo podem reproduzir-se nos media para tentar fomentar a explanação do sucesso meritocrático, mas quando analisamos os factos – ou mesmo observamos o óbvio – só há uma decisão que esta geração deve tomar para ter sucesso na vida que é escolher os pais corretos. 

“You either choose the right parents or the game is over” ouvia-se o economista entre gargalhadas no salão principal da Gulbenkian. Piadas à parte, há uma relação sistémica quantificada entre o nível educacional  e os níveis de rendimentos, e essa educação depende da capacidade financeira dos pais dos novos trabalhadores. 


 O Gini índex conta-nos a história de como Grã Bretanha e Estados Unidos são os países com maiores níveis de desigualdade e maior dificuldade de acesso à educação e de como os escandinavos são os em que há maior acesso à educação e menores níveis de desigualdade. Portugal, dizia Stiglitz, não estava no gráfico que nos mostrou, “mas encontra-se entre os piores” disse a seco.

Ainda relativamente ao suposto progresso exponencial, a desigualdade global nos países da OCDE tem crescido nos últimos. A crise do crédito subprime que começa em 2007 nos EUA para se transformar numa crise económica global em 2008. De lembrar o que aconteceu com as agências de rating e os bancos norte-americanos que perante a subida de preços dos imóveis e alta liquidez do mercado internacional, começaram a fornecer empréstimos massivos a pessoas com histórico negativo de crédito para a compra de imóveis - antes só permitida a indivíduos com histórico positivo de pagamento e renda aprovada.

A incitação indiferenciada a um consumo com efeitos pejorativos – baseados na aquisição de títulos da dívida em esquema de pirâmide – acaba por proporcionar uma crise de liquidez, ou seja, uma retração de crédito na economia que conduz a uma inevitável - ou evitável, como diria Stiglitz - bolha financeira, a stock market buble

 “Trickle-down economics doesn’t work” 

O termo politico populista que tem vindo a caracterizar políticas económicas que favorecem os mais privilegiados e que defende que quanto mais dinheiro for para o topo, toda a população irá nutrir-se de capital, nunca foi uma teoria fundamentada ou teve qualquer suporte empírico. A desigualdade é efetivamente uma escolha, as grandes diferenças de distribuição de riqueza nos países desenvolvidos sugere que são as escolhas políticas não as inexoráveis forças do sistema económico que impõe a fragmentação social. A desigualdade é uma escolha, um resultado de como os decisores políticos foram estruturando a economia através da taxação, das políticas de despesa, da formatação do enquadramento legal, das nossas instituições, especialmente daquelas que conduzem as políticas monetárias. 

  “We can afford to have more equality”, na realidade isso iria ajudar a economia em geral. Economias com menos desigualdade desempenham melhores performances. Igualdade e performance são complementares. A falta de oportunidades traduz-se no desperdício de valiosos recursos. A nível macroeconómico, a ligação entre desigualdades e crises económicas e políticas tem sido comprovada pelo Fundo Monetário Internacional. As pequenas e médias empresas detidas pelas classes médias são os verdadeiros motores da economia e não a acumulação exponencial de capital de gerentes de topo que consomem em menor proporção dos seus rendimentos que a classe média ou baixa. Porque a desigualdade é um resultado de decisões políticas, ela é formatada pela política. Desigualdade económica traduz-se em desigualdade política e desigualdade política gera desigualdade económica, perpetuando um ciclo vicioso. 

As consequências da desigualdade passam pela sabotagem da democracia, a divisão da sociedade, sobretudo se as desigualdades coincidem com minorias étnicas. 

É urgente rescrever as regras da economia de mercado para que estas não sejam meras teias de proteção de 1% de privilegiados e não é com acordos de comércio transnacionais que de comércio têm muito pouco e que mais uma vez formatam a lei para a proteção de interesses corporativos que rescrevemos as regras da maneira correta (TIIP). A realidade é uma criação coletiva por isso criemos aquilo de que podemos todos beneficiar.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Mr. Robot review

Mr. Robot é uma série da USA Network criada por Sam Esmail. Um cyberpunk–thriller drama que junta a contemporaneidade dos movimentos de ciberterrorismo à vontade adolescente de uma revolução que descomponha os paradigmas basilares de uma sociedade de consumo alicerçada numa conspiração mundial. 



Uma das coisas que me cativou nestes seis episódios já disponíveis é a homenagem clara a obras cyberpunk com este travo de ficção científica distópica e politizada. Começando pelo grande paralelismo entre o formato da narrativa com aquele que David Fincher adotou na adaptação do romance de Chuck Palahniuk, Fight Club. O discurso anticapitalista e anti-materialista acompanhado de imagens que retratam um quotidiano cansativo regido pelas regras da banalidade consumista e por um conceito de pueril felicidade, os planos longos e contemplativos, o narrador na primeira-pessoa, a banda sonora a enfatizar o drama tecnológico ou a ironizar com melodias desadequadas ao contexto. É um gosto pessoal, aprecio particularmente as representações satíricas da sociedade. Isto e o facto de que o nosso anti-herói sofre de vários distúrbios psicológicos não identificados (bipolaridade, esquizofrenia?), o que faz com que os subplots em que se introduz e os vários níveis de conspiração possam ou não ser reais – a mesma dinâmica Edward Norton - Tyler Durden. Já no antagonista Tyrell Wellick vi uma sucessão de referências a Blade Runner, American Psycho e Comopolis, um levantamento do estado da arte, um reconhecimento do que já foi feito. Não faz com que a série perca originalidade mas antes ajuda-a a enquadrá-la no seu género e a descrever a sua estética e estilo. 

É verdade que vivemos numa época de revivalismo noir, há um determinado público muito virado para uma estética decadentista, niilista, conspiracionista. Elliot é um ser escolhido para perpetrar uma missão e a sua suposta intelectualmente superior é depreendida pela atitude cínica com que encara o mundo. Digamos que para mim é uma espécie de complexo adolescente em continuidade para justificar as arduidades de adaptação a um meio social aqui considerado amplamente fútil e ingénuo. Acho que muita gente se vai identificar com este tipo de personagem. Nos dois primeiros episódios senti alguma dificuldade em lidar com esta personalidade revoltada contra o capitalismo e o poder instaurado pela política e economia mas que recorre constantemente a clichés para se fazer entender. Se por um lado, Fight Club tinha uma vertente espiritual, da purgação do ser pelo desafeto ao materialismo, em Mr. Robot Elliot coloca o peso em toda a indústria produtiva, muitas vezes atirando em todas as direções, seguindo os padrões de uma rebelião anárquica e anónima aproveitando-se estilisticamente de fenómenos como Anonymous ou as manifestações de Occupy Wall street. A combinação destes elementos é feita com mestria e a personagem de Tyrell Wellick remete-me para um prazer adolescente de um vilão estilizado numa lógica maniqueísta. 

Apesar de alguma resistência ao piloto, ao terceiro episódio senti-me magneticamente atraída pela série e vou certamente seguir. Se me sentir inspirada ainda escrevo aqui mais alguma coisa sobre os meus pensamentos acerca do desenrolar da narrativa. Haja inspiração!    

quarta-feira, 15 de julho de 2015

A Década dos Psicopatas | Daniel Oliveira


Daniel Oliveira, Sara F. Costa
Em O Bom, o mau e o Vilão, a 14 de Maio de 2015

    A Década dos Psicopatas é o primeiro livro de Daniel Oliveira, uma seleção dos melhores textos que escreveu nos últimos dez anos para o jornal Expresso. É a obra ideal para conhecer todo o pensamento do Daniel. Como dizia Ana Drago na apresentação é um livro que faz “os retratos da nossa democracia, dos seus poderes reais, dos seus principais protagonistas e das suas promessas incumpridas” e que “A Década dos Psicopatas” levanta “profundas inquietações”, nomeadamente a “sensação de 10 anos vividos em crise permanente” e “a perceção de que vivemos a última década discutindo a insustentabilidade do regime”.

     Ler e reler as crónicas do Daniel faz-me reviver alguns dos momentos mais marcantes da vida política nacional nos últimos dez anos. Faz-me também reviver alguns eventos marcantes da política internacional, sobretudo nos últimos tempos, quando pensar a Europa entrou na ordem do dia.

   É impossível concordar 100% com alguém, mas é possível ter uma proximidade tremenda ao pensamento de alguém. É o que me acontece ao ler o DO.

    A sublime prosa com que se expressa, sempre com uma extrema racionalidade aliada a uma profunda inteligência emocional lembram que isto de ter sensibilidade é uma coisa que dá imenso jeito ao pensamento político - dá-lhe consistência. A construção do corpus científico do pensamento político nunca pode ser exclusivamente positivista mas pode ser sempre reflexiva. Não significa que o método de registo não passe pelo empirismo dentro daquilo que são as bases de uma abordagem científica dos factos sociais mas esta reflexão nunca pode ser, como denuncia Pierre Bordieu, uma visão nomotética. Toda a avaliação se prende com uma indeterminação parcial do social, resultado do exercício do livre arbítrio dos indivíduos.

A dominação e o poder devem ser colocados em causa permanentemente. Precisamos de indivíduos com destaque mediático que denunciem e anunciem os eventos de uma sociedade e que a tornam mais democrática, participativa e consciente.

A democracia revela uma mecânica que se alimenta de si própria, quanto mais a igualdade progride, mais a mínima desigualdade é insuportável e surgem as exigências da sua erradicação. Se esta liberdade é obcecada consigo mesma é porque esta é a única forma de a manter. Simultaneamente, somos confrontados com o facto de que o individualismo é também um filho do sistema democrático. Devemos aceitar que o cidadão individualista se desligue da vida pública para melhor se proteger na esfera privada? É este o indivíduo que persiste vivendo alheado das virtudes cívicas, sobretudo quando se insere num período histórico em que não faz parte daqueles que conquistaram tais virtudes? Não se pode desistir de um sistema que não se ajuda a manter. A manutenção da verdadeira participação cívica e da intervenção política têm que ser exercitadas através da informação. É isto que as crónicas do Daniel Oliveira fazem. Estas são as crónicas que sempre me ajudaram a alicerçar a minha reflexão política mas, mais importante, sempre me senti representada por estas crónicas e não encontro mais ninguém no panorama mediático e jornalístico português que o faça, que me represente.
   
   O Daniel faz parte da organização do Congresso Democrático das Alternativas às Eleições Legislativas de 2015 LIVRE/TEMPO DE AVANÇAR. Só lamento que não tenha sido candidato, certamente teria sido eleito cabeça de lista. Como alguém que vê no Daniel Oliveira um pensamento político alternativo de uma esquerda assertiva e de verdadeira "social democracia" e "bem-estar social" só tenho pena que ele não seja candidato.

"Porque contra factos há imensos argumentos, não sou um mero observador. Escrevo para mudar a realidade. Sem ser mensageiro de opiniões alheias, estou comprometido com uma tradição política e com os que tradicionalmente têm menos poder social. Aqueles que têm menos presença no espaço mediático. Porque sou jornalista e respeito quem me lê, recuso a falta de rigor. Mesmo que ela sirva uma boa causa. A minha fraqueza? Prefiro uma má heresia a uma banalidade caridosa." Daniel Oliveira 

segunda-feira, 6 de julho de 2015

OXI


As correntes tradicionais de leitura das Relações Internacionais, nomeadamente o Realismo e o Liberalismo apresentam uma forma de atuação dos estados-nação no palco internacional sempre racionalmente explicado às audiências de uma só forma. Nos discursos de defesa dos interesses estatais, integram-se as medidas que concernem a políticas de defesa militar do estado da mesma forma que integram o discurso da defesa dos interesses económicos de um estado. Sempre na perspetiva de que a estabilidade doméstica justifica posicionamentos externos. O que torna a “defesa de interesses” objeto de reflexão é a sua definição e composição. Os “interesses” podem basear-se em características que divergem entre si muitas vezes de acordo com as características culturais específicas de cada estado, ou seja, consoante a sua identidade.

A explicação única da “defesa dos interesses nacionais” torna-se vaga e sujeita a interpretações. Para Portugal essa justificação é anexada a medidas que não coloquem em questionamento a ordem económica vigente de índole neoliberal da atual zona euro. Mantemos assim os brandos costumes de Eça de Queirós e a memória recente de uma ditadura conservadora.

Richard Ned Lebow no seu livro “Why Nations Fight” escreve sobre quatro principais motivos que historicamente desencadearam as guerras ao longo do tempo: medo, interesse, posicionamento e vingança. Esta é uma abordagem interessante à luz da história grega. A famosa moral ateniense e espartana. De lembrar que "Espartano" significa em várias línguas “rigoroso” ou “desprovido de coisas supérfluas” tal como os povos da Lacónia que nos deixaram o adjetivo “lacónico”, direto, incisivo. A filologia pode ajudar-nos a identificar o tipo de características gregas com as quais nenhum outro país europeu se pode comparar. Claro que falamos de uma identidade ancestral que se dissipa e se volta a instaurar soberanamente nas revoltas contra o domínio Turco, na anexação da Macedónia e com a entrada na I Guerra Mundial no lado dos Aliados, vivendo em monarquia até 1922 e um período de ditadura militar de 1967 a 1974. Desde que retomou o rumo republicano e democrático, salienta-se o investimento que os gregos sempre fizeram em armamento e defesa, um investimento bastante acima da média europeia.




A vitória de janeiro deste ano de um partido como o Syriza acrescenta linhas à vastíssima história grega, revelando uma consciencialização da população mais uma vez não comparável à de qualquer outro europeu. A proclamação dos interesses nacionais não deixa de ser um discurso também ele utilizado por Tsipras ou Varoufakis. O seu entendimento e interpretação é que são outras. Se o interesse de sobreviver financeiramente exige padrões de vida indignos e suspende a liberdade política e social, esse é também um motivo de tensão entre estados e essa regra das Relações Internacionais aplica-se mais uma vez na relação da Grécia com a Zona Euro. Neste fim de semana, resultado de um referendo utilizado pelos poderes ilegítimos e antidemocráticos do capital, com os rostos de Merkel, Draghi e Lagarde mas incluindo os dirigentes europeus que pouco têm dignificado os seus estados incluindo Passos Coelhos e Mariano Rajoy.


Foram as características culturais específicas que deram uma vitória massiva do Não ao domínio neoliberal europeu e são elas que continuam a fazer com que em Portugal a televisão seja dominada por uma elite económica não intelectual cujos mandatos de propaganda continuam a modelar as mentalidades. Chegou a altura de denunciar o assalto à dignidade, à soberania e aos valores democráticos e chegou a altura de um "Não" português. Ninguém é dono da Europa e com ou sem a Grécia dentro da unidade monetária, poucos são os países que vão continuar a representar o valores europeus como os gregos o fazem. 

sábado, 4 de julho de 2015

Sobre a dívida



“Os sistemas de dívida baseavam-se no poder absoluto da riqueza: foi a acumulação de excedentes, nascida da desigualdade e da propriedade, que permitiu que uns tivessem o que faltava aos outros. A dívida é por isso também um modo de dominação. E de submissão: a dívida gerava a escravidão dos devedores faltosos, que perdiam terras e a liberdade para o seu novo senhor.
Esta tragédia da dívida e consequente destruição social determinaram uma resposta ao longo de pelo menos dois milénios antes da nossa era. Essa resposta foi consagrada nos primeiros livros da Bíblia e, antes deles, nas práticas sociais correntes das sociedades mais desenvolvidas do seu tempo, na Mesopotâmia e no Médio Oriente: o cancelamento ou o perdão das dívidas.
Por imposição religiosa ou legal, ou por ação dos reis, a dívida era perdoada e a propriedade devolvida ao escravo liberto. De sete em sete anos, segundo a determinação bíblica, ou quando um novo monarca se sentava no trono nas cidades da Suméria, no Egito ou na Grécia, esse cancelamento das dívidas restabelecia a ordem social. O Jubileu era a festa da libertação das dívidas e do regresso dos servos a casa.”


Mariana Mortágua e Francisco Louçã em “A Dividadura”

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Herberto Helder


O que representa a poesia de um país?

Em 2015 não há muitos motivos para se ter orgulho em ser português. Essencialmente por questões políticas e acessoriamente por questões que se relacionam com a economia local mas também global.
Se a expressão artística em geral consegue representar uma identidade individual ou coletiva, a poesia, pelo uso exclusivo da linguagem consegue minudenciar essa identidade. 

Sempre me identifiquei com o Álvaro de Campos que era estrangeiro em toda a parte e com o Pessoa que declarou que a sua pátria era a língua portuguesa. Dois conceitos pessoanos com os quais desenvolvi a minha identidade desde a pré-adolescência.  

Pessoa falece em 1935 mas é a partir dos anos oitenta que historicamente se começa inscrever na nossa memória coletiva, símbolo da cultura portuguesa contemporânea, lisboeta em particular devido ao esforço que foi feito para que a divulgação da riqueza literária que ele deixou pudesse atravessar fronteiras. Consecutivamente conheço estrangeiros que se apaixonaram por Portugal porque começaram por conhecer Pessoa. Neste Março que celebra 100 anos desde a primeira edição da Revista Orpheu é também um mês em que o país perde mas, sobretudo, a língua portuguesa perde um símbolo maior da sua vitalidade com o falecimento de Herberto Helder.



Em Photomaton & Vox, Herberto Helder define em 1979 o que significa pertencer a uma geração de poetas em Portugal “Eramos uma nova imitação de Cristo na Luciferania versão de alguns radicais antigos ou modernos, para quem a poesia foi uma ação terrorista, uma técnica de operar pelo medo e o sangue”. Até porque a poesia é “aquele equilíbrio no arame que mata o apetite de vertigem e nebulosa delinquência de uma emotividade suburbana”.

Herberto Helder, surrealista, simbolista ou híbrido: um poeta que explora as figurações do corpo (a poesia carnal ou encarnada), da relação com o tempo e com o espaço, da reivindicação da presença do leitor, da relação vida e arte, do discurso do absurdo, da dessincronização dos sentidos e da criação de realidades na realidade. Do prosaico ao carnal, do erudito ao existencial. Um poeta que pôs muita gente ler poesia e outra tanta a escrevê-la. Um homem de esquerda, contra as unanimidades e pensamentos empacotados.

A resposta à pergunta inicial do post encontra-se também dada por Herberto Helder na continuação da abertura desta obra, o poeta como revelação, sendo que “a última revelação é esta de sermos os produtores inexoráveis e os inevitáveis produtos de uma ironia cuja única dignidade é descender do tormento, um tormento sempre equivocado na sua manifestação sensível.” “Escrever é um jogo (…) representa-se a cena multiplicada de uma carnificina metafisicamente irrisória”.
Sabemos que Herberto Helder não quer ser o próximo Fernando Pessoa. Não quer estátuas, não quer ruas, não quer pertencer a protocolos literários, como afirmou em modo de pedido o seu mais mediático filho, o comentador político e jornalista Daniel Oliveira.

De facto, se se refugiou de qualquer meio mediático nos últimos anos de existência não podemos depois da sua morte desejar-lhe algo contra o qual lutou em vida.
 “Se quisesse, apresentava-me como uma vítima da escrita, da inocência, da neurose e suas instâncias psiquiátricas e psicanalíticas”.


Se em 2015 temos poucas razões para nos orgulharmos da nossa identidade, Herberto Helder é uma delas. Apelo ao encontro de uma identidade que não se deixe delinear apenas por fronteiras ou origens mas que se exprima através do nosso maior património: o património linguístico. Cabe-nos divulgar Herberto Helder como ícone de um valor literário ímpar globalmente. A contemporaneidade exige reciclar os nossos ídolos literários. Que estes se mantenham como parte essencial de uma identidade coletiva, sempre.