sexta-feira, 30 de março de 2012

Os conflitos internacionais e a moda



Quando passo em frente à sede do Bloco de Esquerda em Leiria penso sempre no quão talentoso é o partido para arranjar humoristas e designers. O merchandise é pormenorizado. T-shirts, pins e panfletos em geral satirizam situações e tentam transmitir a mensagem do partido. É engraçado mas na sua essência não passa disso: uma piada. O BE é um partido que tão jovem não se consegue descartar desta forma de protesto pelo gozo. Não acharia grave se os dirigentes não enveredassem por aí, mas infelizmente enveredam um bocado. Pessoalmente, compreendo o formato da campanha para ser mais apelativo mas acho que descredibiliza o partido quando o pensamos inserido na sociedade conservadora e envelhecida que é Portugal. Tem a mesma incapacidade de comunicar com os adultos como os adolescentes a têm e até os jovens adultos que se sentem a viver num planeta alheado do dos avós. O partido político deve precaver-se mais desta aversão geracional provocada por uma mera fachada, afinal os pins do Che Guevara e as piadolas com a troika não são relevante, relevantes são os programas partidários e as propostas para alteração de leis apresentadas em parlamento. 

Mas bom, isto para apontar para um dos pins que mais me fizeram sentir o romantismo da nossa esquerda. O pin pró-palestina. É interessante como a dimensão dos conflitos Israelo-Palestinianos se propagou. Quase toda a gente tem noção de que aquilo tem para ali uns conflitos sanguinários. Numa pesquisa mais aprofundada vemos que há muitos outros sítios do mundo com conflitos armados graves dos quais nunca ouvimos falar e dos quais não queremos tomar partido. Neste sim e a principal razão será provavelmente por causa de termos um apoio americano metido ao barulho. Não tenho a pretensão de escrever sobre este tópico em particular porque há para isso analistas e muitos calhamaços de opiniões e perspetivas sobre o assunto. Quero apenas falar da minha experiência pessoal.
Estando envolvida em associativismo que lida diretamente com as políticas europeias no campo da juventude (uma pequena fração de apoios da CE para organização de encontros juvenis internacionais) recentemente tive a oportunidade de estar num seminário que lida com um novo frame destas políticas. O da integração dos chamados Meda countries – os países mediterrâneos. É só por si uma designação abrangente – desde a Tunísia a Israel, passando pela Turquia e Malta, muitos países estão abrangidos por este enquadramento que se quis lato para facilitar cooperação dentro destes projetos. Neste seminário conheci um rapaz muito simpático chamado Roi. Para quem acaba por cair neste clash político com as melhores intenções do mundo ligados à energia da juventude, era difícil ver no meu amigo mais do que uma pessoa animada e divertida, com uma tendência estranha para se rir de tudo à sua volta como que nervoso com as reações dos outros. No meio dos nossos mecanismos de defesa naturais no processo de socialização a maioria das pessoas esquece-se de enquadrar a identidade dos outros num ponto de vista mais do que psicológico, mas nacional. O Roi é israelita e vive em Tel-Aviv. No seminário estavam alguns europeus e muitos árabes.

O seminário decorreu em Portugal porque somos um país neutro, não temos uma variedade étnica enorme e a nossa comunidade de muçulmanos ou de judeus é reduzida. As minhas alunas indonésias não estavam a dizer com leveza que não tinham escolhido França para os seus estudos porque queriam usar o véu à vontade. Estavam a falar bem a sério. É o nosso temperamento brando e amigável. Todos são bem-vindos e não nos metemos com ninguém. Também há coisas boas por cá!
Isto se a neutralidade não estiver intimamente ligada à insignificância, mas seria outro tópico! Entretanto, nestes programas que têm prioridades delineadas e que por isso atraem pessoas com perfis específicos, tenho conhecido algo que em Portugal nunca vi e não sei se existe, jovens académicos especialistas no médio oriente. A minha experiência com os estudos asiáticos e sobretudo com a China já me deu uma perspetiva genérica de como os estudos internacionais se encontram subdesenvolvidos em Portugal. Os estudos chineses, por exemplo, em estado de maturidade avançada em muitos outros países europeus, assim como nos Estados Unidos, ainda se encontram na sua forma embrionário ligeiramente exotérica em Portugal. Felizmente a economia veio aí impor a sua importância no meio do academismo e a língua chinesa já se ensina e já se estuda com a seriedade de qualquer outra.

O estudo do árabe, no entanto, ainda não tem uma aplicação prática tão evidente neste mundo de capital e por isso é apenas semi-existente. Existe enquanto língua e pouco mais. Um amigo polaco dizia-me que eu era realmente extraordinária porque ele nunca tinha encontrado alguém do sul da europa que percebesse patavina de política internacional. Não soube se devia ficar contente com o elogio pessoal ou ofendida com o preconceito. Depois da Merkel nos ter chamado preguiçosos, oficializando assim uma distinção bairrista norte-sul, custa sempre ouvir os northerns dizerem seja o que for sobre nós. Mas será uma realidade? Claro que no leste e no norte se fala mais de política, se o trauma deles é tão recente, existe neste momento uma geração pouco mais velha do que eu encontrada a crescer entre transições de sistemas que se traduzem em transições de realidades. E quando pensamos na Polónia só temos pena. Mas o certo é que ainda não foram atingidos com esta onda anti-sul dos mercados e das economias internacionais, pelo contrário, estão a crescer e o facto de não terem aderido ao euro talvez seja relevante (!). “Falar de políticas é o dia-a-dia do norte” dizia ele enquanto me descrevia a forma como o avô era popular durante a guerra fria por ser o homem que tinha papel higiénico.
Agora o porquê deste nome do artigo. Depois deste seminário com os países mediterrâneos num meio a este semelhante conheci a Reem. Simpática e divertida, veio representar o Reino Unido mas na noite da comida intercultural presenteou-nos com comida da Palestina. A Reem é palestiniana a estudar em Oxford e foi o que me disse quando nos encontrámos pela primeira vez. Não me lembro como reagi em concreto mas sei que a assustei um bocado. Não tendo o que dizer e querendo dizer algo ao fim de dois dedos de conversa em privado disse-lhe ‘Eu apoio a vossa causa’. Ela olhou para mim com um ar cansado e agradeceu ou tentou agradecer. Não era desprezo mas sei que não gostou da minha associação imediata. 



Mas era demasiado pouco tempo e eu tenho demasiada curiosidade. Aprendo mais com as pessoas do que com os livros e a minha provocação acabou por ser consciente. No dia a seguir passou-me um livro para mãos – ainda tínhamos uns dias juntos – “I Shall Not Hate” de Izzeldin Abuelaish. “Agradeço o interesse. Muitas pessoas na Europa não têm sequer consciência e não temos advogados internacionais. Mas não acredito em divisões” depois de vários dias com as mesmas pessoas a falar de temas complexos e que apelam ao nosso lado mais emotivo, os laços estreitam-se. É um efeito big brother mas intelectual. Passei muitas horas a falar com a Reem e tudo o que ela me disse vai ao encontro daquilo que li no livro que me recomendou. Não há anti ou pró. Os ativistas que tenho conhecido têm-me familiarizado com o conceito da coexistência. Trabalhar para a paz nunca é tomar uma posição de ódio e é essa mensagem de Izzeldin. Tendo crescido num campo de refugiados na faixa de gaza, Izzeldin descreve neste livro como acreditou no poder da educação para melhorar a sua situação pessoal num primeiro nível e a situação do seu povo, num segundo (ou a tentativa de). O livro relata a sua experiência de vida e deixa-nos mergulhar no terror que é conviver com o terror. Coisas simples como passar as fronteiras ou obter tratamento médico adequado. A forma como teve que abandonar a casa por ordem israelita, a discriminação. Mas aquilo de que Izzeldin fala também é do conservadorismo do Islão, da desigualdade dos géneros, da forma como a mãe era ostracizada por não ser a primeira esposa do marido e como ele conviveu com isso. A bombista suicida que se armou para tentar explodir um hospital em Israel onde Izzeldin e médicos israelitas a tinham ajudado a tratar-se. A forma como o Hamas cria conflitos civis armados e instala o terror no território palestiniano. Ou seja, o que vemos aqui é uma perspetiva não sectária, não há partes definidas no branco e no preto de quem deve ganhar ou perder porque não há vitórias. Há uma situação complexa.



É inevitável que conhecendo o dia-a-dia de um campo de refugiados em gaza não nos indignemos contra a ocupação brutal de Israel, com a prepotência, com tudo aquilo que representa na luta das classes, o embargo, a humilhação, a forma como ocuparam um espaço e o tornaram fértil injetando-lhe dinheiro à custa do lobbismo americano enquanto alimentam descaradamente um estigma à volta daqueles que inevitavelmente, no meio da miséria, não lhes conseguiram evitar o ódio. Este médico, contudo, acredita na coexistência e ao longo do livro aponta constantemente para a forma como os árabes e os judeus têm muito mais em comum do que de diferente. É um tratado filosófico onde demonstra que, apesar de toda a tragédia que lhe rodeia a existência desde que nasceu e que culmina no bombardeamento do quarto das filhas, é parte da natureza humana ser-se genuinamente bom e positivo. É um relato de vida comovedor que para muitos pode não passar disso mas que para mim é a representação ideal daqueles que têm colaborado com todas as suas forças para formar uma ideologia de coexistência e não de ódio. Ser pró-palestina pode estar em voga mas o que nunca deveria estar em voga é a imaturidade e as ideias formadas a partir de meia dúzia de websites com teorias conspiratórias e explicações simplistas que tocam o antissemitismo. Isto porque o entendimento das religiões em si não devia sequer ser confundido com as etnias ou as várias formas de aplicação socio-política, ainda que religiões como o Islão possam estar orientadas para essa vertente de organização social – como o confucionismo o está, por exemplo. Mas são este tipo de coisas que me irritam nos militantes mais extremos – como o eram os Roptura/Fer com as suas ideias de se juntarem a milícias talibãs no Afeganistão. Contudo, não sou feminista para a seguir vir defender estados islâmicos conservadores. Não sou democrática para a seguir vir manifestar a minha simpatia por tiranias por oposição ao apoio que o capitalismo americano que lhe faz. É isso que às vezes me chateia nos pins pró-palestina, esta ideia por detrás de que as coisas podem ter explicações simples e uma fação clara. A minha ideia é a mesma que a deste senhor levemente desconhecido mas que tanto fez por esta causa: militem se querem militar, mas militem pela paz.