quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Torres de Ouro




Vou escrever genericamente com ornamentos abstratos de forma a tentar atrair as atenções dos amantes da leitura que não tolerariam, obviamente, um desabafo ressabiado de um ou de uma qualquer transeunte inútil com mágoas de cabeceira para partilhar com uma audiência imaginária. É contudo óbvio que o que se segue são rastos de experiência pessoal acumulados num inconsciente escoriado, a cicatrizar lentamente usando o tempo como pomada hidratante reconstrutora dos tecidos do bem-estar diário.


Não há lugar algum onde padrões de comportamento registados entre indivíduos da mesma sociedade possuam interpretações lineares. As ciências sociais e até as ciências humanas possuem assim este caráter místico, de uma imensidade de explicações e planos teóricos altamente improváveis (impossíveis?) de serem testados. Mas vamos voltar a mim porque a vitalidade de uma personagem é o que torna a ficção um lugar menos árido do que o texto académico. Ah, esta última palavra, o academismo. Qual o desapontamento de me aperceber que os académicos nas melhores universidades deste país vivem ainda inacreditavelmente em torres de marfim. (A expressão Torre de Marfim designa um mundo ou atmosfera onde intelectuais se envolvem em questionamentos desvinculados das preocupações práticas do dia-a-dia.) Suponhamos que vou falar de economia ou do estado social. Quero descrever violência estrutural mas a única forma de violência que experienciei foi o arrivismo intelectual no qual me asfixio de forma a ter um lugar garantido num pedestal de prestígio que me refugia de qualquer realidade. Faz sentido? Não, não faz. O entendimento do mundo deve ser visceral antes de ser teórico e não quero usar a palavra empirismo porque não é de empirismo que se trata porque esta porcaria do empirismo é a forma que os académicos usam para dizer conhecimento pragmático. Pragmatismo é sujar as mãos. Sim, sou maluca – está diagnosticado. Há em mim uma necessidade ridícula de compreender as coisas em profundidade, mas não é essa profundidade intrínseca de literaturas infinitas que compõe o espólio intelectual de um académico. Claro que sim, claro que o conhecimento é o aspeto basilar da compreensão da realidade. Está para mim fora de questão pôr em causa o papel do conhecimento teórico e do papel da educação. O que ponho em causa, contudo, é a hipocrisia. A hipocrisia de se falar em responsabilidade social e de se desprezar frontalmente a responsabilidade que um professor tem, por exemplo, perante um aluno, dispensa o seu tempo e paga propinas e tem expectativas, o que é compreensível. Mas o tutor com a sua inquestionável notoriedade no seu grupo de pares, no seu grupo de estrategas do poder tem que publicar, porque tem que debater ideias num colóquio internacional e aproveita para pôr umas fotos no facebook a dizer como é bom estar em Nova Iorque a passear num intervalo de um debate interessantíssimo sobre os conflitos no Sudão ou as discrepâncias sociais na Rússia. E vamos falar de hipocrisia como ela deve ser falada, todos somos uns potenciais exibicionistas e foi a internet que o comprovou. Acho que já dei este exemplo mas continuo a gostar dele. Era Orwell que falava do medo de sermos constantemente controlados por um estado totalitário que não nos dava liberdade de ação sem supervisão. O que vemos, no entanto, com o advento da ultra-exposição, numa explosão de ecrãs é que ela é procurada incessantemente. As luzes ligam-se, as câmaras estão a filmar e quem não se quer pôr à frente delas? Sobretudo se é para realçar as necessidades que o nosso ego foi construindo – porque o ego é uma construção social – temos todos necessidade de reconhecimento, necessidade de prestígio – não vou descer tão baixo ao ponto de falar de fama mas é mais ou menos o mesmo - são todas essas palavras utilizadas diariamente em todos os meios de comunicação e que nos incutem uma forma coerente de perspetivar a realidade com base em valores que outros definiram. Esta experiência universitária começa desde o primeiro ano de qualquer espaço de ensino superior, mas naturalmente que se intensifica em patamares da pesquisa académica mais avançados. E é claro, vão-me dizer, metes-te em meios competitivos, estás à espera do quê? É sempre esta inocência parva que me caracteriza que me faz acreditar que o mundo não é como uma série americana onde o Kevin Spacey é um sociopata homicida em nome do poder. Se é para perceber de poder, as teorias do poder segundo Foucault são mais esclarecedoras do que qualquer coisa filmada e nisso estou de acordo com qualquer marfim em qualquer torre. Este texto não tem o intuito de ser moralista porque como dizia alguém estou-me a borrifar para o moralismo ou até se calhar mesmo para a moral. Sobretudo para a moral da história. Mas é acima de tudo a hipocrisia que me irrita e é a irritação é uma das melhores combustões para os meus textos, deve ser o meu lado de animal político ou talvez haja uma distinção essencial entre sociabilidade e política como dizia a Arendt. O que importa? Uma das coisas que aprendi em relação ao texto académico: há regras mas essas regras não são ensinadas. É um bocado como quando o meu treinador de viet vo dao me dizia que ele aprendeu tudo o que sabia sem que ninguém lhe explicasse. O mestre dele limitava-se a fazer o exercício uma vez e a exigir que o aprendiz descobrisse como é que aquilo se executava, sem qualquer orientação, a partir do absoluto vazio. Há uma lógica taoista muito interessante, é certo. Mas é isto um texto académico? Uma professora dizia ‘olhem, a mim só me explicaram isto no último ano, mas eu estou a explicar-vos logo no primeiro… olhem que sorte!’. É exatamente como o meu mestre de artes marciais me dizia ‘eu estou aqui a dar-te a papinha toda feita, a explicar com metodologia e orientação todos os passos que deves dar para executar o exercício, mas olha que o meu mestre não me dizia nada… olha que sorte que tu tens!’. Agora, das duas uma: ou vocês estão a gozar com a minha cara e isto de redigir um texto “científico” é tão rigoroso como uma prática esotérica ou então há uma hipótese bem mais perversa e bem mais ofensiva, não querem que o aluno chegue aí ao lugar onde vocês estão? Não quer o mestre que o discípulo o substitua? Se é esta última, não há nada a dizer a não ser, é triste. Não é por aqui que se quer andar quando se procuram verdades. Sejam elas quais forem. Acerca da condição humana ou da cura para o cancro. Um professor que não quer ensinar devia estar a fazer outra coisa qualquer.

Bom, a minha ideia era falar da minha experiência corporativa e ainda não saí dos traumas da escola e falta-me tocar no tendenciosismo ideológico e incapacidade de imparcialidade de vários profissionais com os quais me cruzei, que é mais grave do que isto tudo. Vamos esperar por um próximo capítulo porque o lorazepam está prestes a fazer efeito. Para concluir, eu entendo que qualquer entidade ou organização institucional onde existem pessoas com aspirações se possa tornar num sítio tomado por estratégias de manipulação e disputas por um lugar de sabe-se lá o quê – muitas vezes nem sequer é uma coisa tão concreta como ‘dinheiro’, embora o materialismo seja para mim uma fonte de justificações para o comportamento coletivo mas nem sempre para o individual. Parenteses à parte, é honestamente triste ver que a meritocracia está neste país altamente baseada em preconceitos e jogos de influência – o que anula o conceito de “meritocracia” - irónico.  É a minha dose de ironia por hoje. 

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