segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Os homens que odeiam as mulheres / The Girl with the Dragon Tattoo

Tentar conjugar numa só obra um policial com jornalismo de denúncia mais questões de género mais reflexões sobre o estado de bem-estar social dos sistemas nórdicos pode parecer extremamente ambicioso e, ainda assim, soa incrivelmente bem! Soa bem sobretudo porque misturado a isto tudo temos a fabulosa paisagem de um país que é conhecido no estrangeiro por pouco mais de que mobiliário estético fácil de montar e barato (o que já é bastante, quando pensamos nisso!).
E isto é aquilo que faz com que esta saga seja também uma forma de valorização cultural nacional. Sim, porque a arte valoriza um país.

Vou tentar escrever este excerto como se estivesse a tomar uma cerveja e a gesticular numa manifestação de energia juvenil e espírito sonhador: temos uma história brutal sobre um assassinato e essa história decorre na Suécia e a Suécia é super awesome e tem paisagens fixes no Inverno e na Primavera e tem personagens super carismáticas e há grandes empresas que fazem grandes golpes financeiros e jornalistas de grande ética que procuram desenfreadamente a denúncia. Há hackers punks que punem os criminosos pelos seus próprios meios e há toda uma reflexão sobre política, sociedade, organização e caos e isto constitui um conjunto de elementos para algo de extraordinário. Imagine-se um português a escrever uma coisa assim!

Agora, ao escrever este artigo, de que é que posso falar? Dois filmes e um livro. Se toda a densidade da trama e os vários aspetos em foco não forem suficientes, temos ainda que lidar com dicotomias no que diz respeito à perspetiva de Stieg Larsson como basilar e às perspetivas do sueco Niels Arden Oplev e do americano David Fincher.
De facto, é difícil compreender o porquê dos remakes. Isso porque muitas vezes sentimos que o remake hollywoodesco está lá porque houve uma necessidade de adaptação cultural que o público americano tem dificuldade em encarar e isto, de um ponto de vista europeu, soa bastante estúpido. Durante algum tempo pensei que Fincher tinha optado pela adaptação a cinema da saga Millenium porque ela fazia parte de uma agenda mas depois de ver o filme condeno-me por ter alguma vez questionado a consciência da escolha do Fincher.
Na realidade, o tema atrai-o e a perspetiva que ele adota no filme, sob o ponto de vista da Lisbeth, é uma demonstração do envolvimento dele com a obra. Não só a quis apresentar como a quis interpretar. O filme sueco careceu não só de orçamento ou cultura cinematográfica mas também de visão e isso, na minha perspetiva, é o que não falta em Fincher.

A estrutura clássica do policial concentra e converte a maior parte das pessoas. Claro que o espírito detetive do público consegue mais concentração quando as pistas são dadas no formato de livro e daí elas existirem lá em mais abundância, contudo, penso que o Fincher conseguiu abreviar a estrutura de forma a ela ser percetível pelo público. Esta parte convence a maior parte da audiência. Depois há o resto que se apercebe que o filme não é sobre o caso de uma rapariga desaparecida, não de forma tão linear. O grande magnata empresarial conduz Mikael a um embuste quando não tem o que lhe tinha prometido ter para lhe dar e, para além do mais, atenta contra a sua liberdade e aos seus valores ligados à transparência: pede a Mikael que não revele o sadismo de Martin. Este é um aspecto que me parece relevante para o autor.

Vou voltar à questão do ponto de vista, adaptar aquele livro para cinema requeria o eleger das peças que queremos enfatizar e dos temas que queremos realmente explorar. Fincher envereda e diria até que se arrisca bastante quando elege o ponto de vista de Lisbeth. Isso porque opta por explorar em grande parte a problemática do género. Quem me conhece neste ponto deve achar que fico toda contente! O que não é bem verdade. Isto é, fico contente que ele tenha feito opções mas não vejo na saga Millenium a questão do género como a melhor. Claro que o filme é sobre homens que odeiam as mulheres e o desfecho do caso se relaciona com uma hierarquia de misóginos mas há na personagem de Lisbeth um ícone no qual não me revejo porque não a considero completamente feminista.

Aqui, as formas de atribuir poder à mulher são formas essencialmente… masculinas. Isto revela-se em alguma força física fora do comum que Lisbeth possui – a mota, a agilidade corporal, etc. Revela-se ainda mais na perspetiva de Fincher sobre o que é o poder feminino no ato sexual – a forma como Lisbeth utiliza o Mikael procurando apenas o seu próprio prazer ou até o facto de ela surgir inicialmente como lésbica.
Isto para explicar a minha não identificação total com o questionamento do género que foi um tom ligeiramente adotado por Fincher – daí o ênfase numa cena brutal de violação com o devido alívio posterior, o da vingança. A senhora ao meu lado só se ria quando a Lisbeth dizia que ela era louca e torturava o seu violador. Parece que o sadismo é coisa vulgar. Eu não consigo deixar de lado o tom perturbador desta escolha. Mas esse é o meu problema em aceitar uma mera destruição do sistema.

Que ela era louca! É aqui que Fincher ganha muitos pontos em relação ao seu colega sueco. Fincher criou diálogos, apanhou-lhes a essência e encurtou-os. Ainda assim é um filme longo mas imagine-se se quiséssemos transpor as palavras de Larsson como realmente eram. Teve uma resolução criativa para muitos dos problemas – quem é que não adorou o wink wink quando no fim nos trocam a Anita pela Harriet?
Fincher tentou surpreender os mais bem-entendidos no assunto porque ele sabe que os há e optou por esta forma de recriação.

Na minha perspetiva, o caso de investigação torna-se secundário e o facto de Mikael ser um jornalista com ética que procura simplesmente a transparência, sem simpatias ideológicas particulares, que a certo ponto cria empatia pelo Henrik Vanger é um dado bastante importante e mal explicado no filme. Mas, mais uma vez, isto dá-se porque o realizador teve que se debruçar mais sobre Lisbeth e menos sobre Mikael.

É interessante como a personagem de Mikael sempre foi aquela que me cativou mais ao longo da saga.
 A parte introdutória no livro em que se percebe que não é propriamente um homem seduzido pelos grandes patrões nem um sonhador idealista nem um intelectual misógino. É simplesmente ele, respondendo de forma cartesiana aos desafios, sendo metodológico dentro daquilo que considera capaz de ordenar. Evitando frustrações desnecessárias mas não indo contra os seus desejos – livro posteriores da saga exploram mais este aspaço. Mikael é um homem moderno face a problemas também eles de género e é este reverso da medalha que o torna uma personagem tão bem conseguida. Lamento que no filme ele não tenha oportunidade de se expor mais enquanto ser inteligente e interessante que é porque há demasiado a necessidade de ser atraente para Lisbeth para que esta atravesse um processo de maturação que culmina num desgosto.

Para sintetizar a minha apreciação, sou claramente fã da saga Millenium e queria um filme que fizesse jus ao livro, que conseguisse pôr em imagens grande parte dos momentos intensos do livro e o filme sueco foi uma grande desilusão mas, à parte de uma perspetiva inevitável do realizador, Fincher tem um trabalho conseguido. Já há algum tempo que a grande tela não trazia verdadeiros momentos de desconforto e neste filme eles surgem em todo o seu esplendor, num contexto controlado como devem surgir mas, acima de tudo, num contexto extremamente artístico.
Aquela reminiscência de Reservoir Dogs na cena de tortura do Martin é simplesmente deliciosa.
Conseguiu manter o hype elevadíssimo que o famoso trailer lhe criou, captou uma das várias mensagens do livro e transmitiu-a. O elenco está mais que conseguido. Siga para o próximo!

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