sábado, 2 de maio de 2009

Civismo

"Não há nada de mais relevante para fazer. Todos os dias acabamos por nos questionar que tipo de vida podemos levar estando num sítio ou noutro do mundo e quando nada parece ter limites, o sonho é tingido por uma espécie de pragmatismo ridículo. “Quanto mais discrepância social melhor”, pensamos. Porque já não há limites. Não há limites emocionais, não há geográficos, não há culturais. Não há mitos, não há medos. Talvez nunca nos atrevêssemos a ir para a Coreia do Norte, dizes, a rir. Onde está a nossa posição? Onde está a nossa dignidade.
Pela quinquagésima vez na mesma semana uma pessoa tenta meter-se à minha frente na mesma fila no mesmo restaurante. Um daqueles aos quais pelo menos 70% não pode aceder mas que nós consideramos barato e nem sequer somos pessoas com muito dinheiro. Quero dizer, eu não quero voltar a bater na mesma tecla. Claro que fico irritada, como assim não fico irritada? É a quinquagésima vez que me tentam passar à frente na mesma fila e eu já revi mentalmente as palavras que tenho que dizer caso esta pessoa se atreva a empurrar-me, já revi os tons e vou berrar e vou berrar muito se se atrever a passar à minha frente. E penso claro, são tão egoístas, como algum dia evoluir para algum tipo de civismo? Não se repreendem mutuamente quando mutuamente se passam à frente uns dos outros na fila, não repreendem a falta de civismo porque na próxima oportunidade eles próprios não terão civismo e sabem-no e porque repreender é aceitar um compromisso demasiado forte. E penso, há tanto tempo que já estou cá, há tanto tempo que estudo esta língua monossilábica recheada de homofonias e intersecções musicais e trabalho tanto com outras línguas que não a minha, que me esqueço, esqueço-me profundamente, como se escreve esta palavra?
E quando estudo e quando o meu estudo intersecta os sentidos mais ou menos profundos, mais ou menos específicos das necessidades de cada pessoa em cada lugar no mundo e suas ramificações, lembro-me dos que fizeram os esforços de aproximação cultural em nome da divulgação de uma salvação divina e que descobriram a profunda compreensão do outro pela renegação de si próprio e que não foi muito conveniente.
E penso em mim, quero eu salvar alguém ou alguma coisa ou também eu só me restrinjo ao meu sentimento egoísta de compreensão temporária de uma realidade que me entretém e me faz enriquecer a nível emotivo, como se o saber fosse uma colecção de coisas que uma vez adquiridas ficam expostas na estante da minha aura de pessoa culta e informada com currículo à espera de competir com a requerida violência nos mercados modernos da supremacia. Quem é mais ou menos egoísta para poder julgar? Pela quinquagésima vez na mesma fila do mesmo restaurante barato que afinal é caro sinto-me igualmente furiosa e igualmente superior e igualmente egoísta, como qualquer outra pessoa que se julga maior o suficiente para reclamar por civismo."

Sem comentários: