terça-feira, 10 de julho de 2007

Representar!

A minha experiência no teatro pode não me ter ensinado sequer a ser um boa actriz mas ensinou-me certamente a possuir a capacidade de discernimento em relação ao que é o bom actor e o mau actor. E digo-vos: não é a transferência ou desenvolvimento de uma capacidade cognitiva ou da sua potencialidade: não! É antes um objecto de tortura! Ligar a televisão e ter vontade de agarrar alguma coisa para destruir, ir ao cinema e tantas vezes ter vontade de vomitar, ir ao teatro nacional de São João no Porto ver a última encenação de Ricardo Pais da tragédia “Castro” e ter vontade de me atirar da Ponte do Freixo abaixo direitinha às profundezas do Douro!!!…



Para que é que as buscas de aprofundamento psicológico empreendidas com o fito de solucionar a problemática das origens da técnica e do desempenho interior de Stanislavski se estudam na merda dos institutos superiores de teatro deste país? Porque é que servem efeitos exteriores de representação quando não há a encarnação de estímulos que venham de dentro? A liberdade corporal e orgânica na sua função essencial no suscitado da emoção interna na actuação interpretante: um mito? Não, não é mito nenhum! A liberdade dos músculos é essencial mas não, nem tudo passa pela simples respiração ou postura corpórea, como me fazia acreditar o meu primeiro formador de teatro dos fabulosos (not) Seiva Trupe. Tem que haver – e vamos lá a estabelecer prioridades – apropriação física mas, acima de tudo, apropriação espiritual. Todos os sentidos, o pensamento, a vontade, o sentimento, a memória e a imaginação, além do corpo, devem estar dirigidos para o único fim: o de criar o que se passa no âmago da personagem.

Ribot (1839-1916), na sua Psychologie des Sentiments (1896) mostrava que o objectivo final de qualquer lembrança é guardar a impressão de uma experiência de uma forma tal que a recordação se apresente tanto quanto possível com a força da impressão original. Foi este tipo de preceito que tentou transpor nesta época de Alexêiev e Stanislavski o Teatro de Arte em Moscovo. A memória afectiva era um campo de experimentação que tinha o efeito de remover a estereotipia da representação, fazendo com que tanto a psique como o corpo recordem as experiências pelas quais passaram, ou seja, o actor é levado à complexidade da experiência genuína através daquilo a que o meu encenador, João Negreiros, chamava o processo de transferência.

Ou seja, a experiência do universo interior intimista ganha uma nova dimensão de valor em detrimento da mera cópia ou dos produtos de empréstimo levados a cabo por tantos actores. Isto pode ser doloroso, claro, entramos num entendimento da própria psicologia e da auto-análise na procura constante do nosso ser. É uma área delicada e muitas vezes perturbadora. Não estaremos à espera portanto que os meninos tão felizes e joviais das nossas novelas juvenis queiram atravessar algo tão avassalador. Essa consciência de si e dos outros é que serviu de base às reduções puramente realistas a que deu azo o método de Stanislavski, mas também às profundas penetrações na interioridade, nos termos de Grotóvski, por exemplo. As vivências pessoais constituem as sementes do acto criativo, através da excitação emocional (por isso o João dizia que o actor é um atleta emocional), que depois desabrocham com a convergência do imaginário.
Há ainda uma série de outras características do método Stanislavskiano que serviriam para uma tese e não para um texto de blog, mas enfim. No fundo a exploração do subtexto vai directo às profundezas da psique e isso reflecte-se em termos físicos, abrindo-se assim a possibilidade de revelar os recessos da alma humana, mediante uma longa análise do texto e uma exaustiva reflexão sobre os papéis.

Constrói-se uma personagem que acompanha o actor desde que este acorda até ao momento em que se deita, conferindo-lhe uma existência biográfica própria, um antes e um depois em relação à delimitação do dramaturgo, sofre-se com ela, pensa-se como ela, adopta-se a sua forma de sentar e de lavar os dentes, e isto, isto não é mesmo nada fácil!... É tão difícil como encontrar um actor neste país que o faça.

Eu sei a forma como a construção da minha personagem de 3 meses (Stanislavski defendia que eram precisos 9 meses para a construção de personagem) interferiu com a minha personalidade, a minha relação com os outros, o frenesim diário das várias flexões emocionais, a energia física e psicológica despendida, não é fácil lidar com o emaranhamento profundo da nossa psique e isto afectou a minha relação comigo mesma e com os outros. E tudo para quê? Para quê toda esta aprendizagem? Para vir a representar durante vinte sessões num autêntico chiqueiro com cheiro a mofo chamado amigavelmente de 'auditório do teatro universitário' com mais ou menos vinte pessoas a assistirem em média por espectáculo?
As pessoas não sabem o que são boas representações porque raramente elas lhes são apresentadas. Não há este tipo de reconhecimento. Por isso, fazer bem ou mal, vai levar ao mesmo. Afinal, como diria a minha professora de Literatura Comparada que obrigou os pobres dos alunos a verem a Castro encenada por Ricardo Pais, o que importa em teatro é o cenário incrível, as roupas muito bonitas e os actores a falarem de uma forma absolutamente melodramatica de início ao fim, sem variações, sem a mínima consciência daquilo que estão a dizer mas, atenção: a projectarem a voz de uma forma fantástica!

1 comentário:

João Negreiros disse...

Que texto extraordinário, devia ser publicado num livro de teoria de Teatro ou num compêndio sobre construção de personagem. Os meus sinceros parabéns, sinto-me orgulhoso por ter, de alguma forma, contribuido para despertar alguma dessa clarividência. Abraço
João Negreiros