quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Da condição humana

Em Portugal há sem dúvida uma distinção entre o comentador político e o teórico político. Isto porque o teórico não se expõe por dificuldade de legibilidade dos conteúdos para a maioria da população. Contudo, a leitura de uma agenda política partidária não deveria ser suficiente para se construir uma posição política. Compreendo que se pretendam encontrar soluções para problemas concretos e imediados, mas o que fica por detrás é todo o legado civilizacional que nos pertence.



Para os romanos, provavelmente o mais político dos povos conhecidos, a palavra “viver” tinha por sinónimo “estar entre os homens” (inter homines esse). É aqui que começa o debate sobre as várias terminologias: a vita activa (labor, trabalho e ação), a contemplação, o discurso (lexis) a polis e o bios politikos. Por um lado absorve-se do pensamento clássico que a mortalidade é a categoria central do pensamento metafísico e que a natalidade, por seu lado, é a categoria central do pensamento político. A ação (praxis), torna-se na atividade política por excelência.

O livro “A condição humana” de Hannah Arendt deixa de lado o pensamento e a razão para se centrar na vita activa enquanto “vida dedicada aos assuntos públicos e políticos”. A ação necessária para manter o bios politikos. O conceito de contemplação surge como substituto da vita activa, principalmente por parte da igreja que defende uma necessária quietude. No entanto, para os filósofos: “Do ponto de vista da contemplação, não importa o que perturba a necessária quietude, o que importa é que seja perturbada”.

Quando a preocupação com a eternidade e mortalidade chegou ao pensamento filosófico, Heráclito regista a sua crença de que apenas os melhores se poderão inscrever na eternidade. É um pensamento singular, não encontrado em mais escritos filosóficos clássicos. Contudo, o eterno surge como verdadeiro e o lado divino no homem está na sua inscrição no eterno. Num cosmos onde tudo é cíclico e imortal, o homem vê-se como único elemento mortal. 

Desta forma, a religião cristã que tomava para si todo o ocidente era apologista de uma vida contemplativa, fora da necessidade da vida entre os homens. É aqui que existe a separação entre vita contemplativa e vita ativa. A preocupação com a imortalidade que se sobrepôs a todas as outras está intimamente ligada à queda do Império Romano. Esta demonstrou claramente que nenhuma obra de mãos mortais poderá ser imortal e foi acompanhada pela promoção do evangelho cristão – uma vida individual eterna. Se qualquer busca de imortalidade terrena se tornava fútil e desnecessária, a vita activa e o bios politikos resumiam-se a servos da contemplação. 



“Nem mesmo a ascendência do secular na era moderna e a concomitante inversão da hierarquia tradicional entre ação e contemplação foram suficientes para fazer sair do esquecimento a procura da imortalidade que, originalmente, fora a fonte e o centro da vita activa”. (Arendt, 1958, 33) 

 A ação como prerrogativa exclusiva do homem, depende da constante presença de outros. Aristóteles chamava ao homem animal socialis e já Séneca aceitou como tradução consagrada “homo est naturaliter politicus, id est, socialis” (o homem é, por natureza, político, isto é, social). A vida em societas generis humani – sociedades humanas, traz ao termo “social” a sua posição de condição humana fundamental. Platão e Aristóteles apenas não consideravam que esta condição fosse essencial mas antes uma necessidade da vida biológica. O bios politiko é, de acordo com o pensamento grego, uma segunda oikia (casa) e família. Como se a partir de agora todo o cidadão tivesse duas ordens de existência que não apenas o privado. 

Dividem-se assim aquilo que lhe é próprio (idion) e aquilo que é comum (koinon). Não se tratava apenas de uma pensamento de Aristóteles mas da constatação de um facto. A partir do momento em que surge a polis, ou cidade-estado, ela destrói todas as organizações fundadas à base do parentesco. A esfera da Polis, pelo contrário, era a esfera da liberdade, e se havia uma relação entre essas duas esferas era a de que a vitória sobre as necessidades da vida em família constituía a condição natural para a liberdade na polis. A política não podia ser apenas um meio de proteger a sociedade – uma sociedade de fiei, como em Locke, ou uma sociedade inexoravelmente empenhada num processo de aquisição, como em Hobbes, ou uma sociedade de produtores, como em Marx, ou uma sociedade de operários como nos países socialistas e comunistas. 

Em todos estes exemplos é a liberdade da sociedade que limita a autoridade política. Assim a liberdade é já para a os filósofos clássicos um assunto que se situa na esfera política ou social e que a necessidade é um fenómeno pré-político, característico da organização do lar privado. A violência torna-se assim no ato pré-político de libertação da necessidade da vida para conquistar a liberdade no mundo. 

Contudo, o pensamento político do século XVII acredita que só é possível evitar a violência ao ser estabelecido um governo que, através do monopólio do poder, controle o temor. Pelo contrário, todo o conceito de domínio e submissão, de governo e poder no sentido que o concebemos hoje, assim como à sua ordem regulamentada, eram tidos como pré-políticos, pertencentes à esfera privada e não pública.

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