quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Os cus de Judas - ALA

Agora que a LeYa publicou uma edição de bolso de Os Cus de Judas de António Lobo Antunes, não há motivos para não ler esta obra de arte soberba da literatura portuguesa e universal. Deixo aqui um excerto e recomendo como prenda de natal económica! Ah... e outro dia vi na estão da Campanhã que a os livros de bolso da Leya estão a ser vendidos em máquinas automáticas... até já parecemos um país desenvolvido! :D Parece que os livros desta colecção serão lançados 3 vezes por ano: em Janeiro, Maio e Setembro... portanto, a ver o que vai calhar em termos de edição já para o próximo mês.




«Às quatro horas da manhã os espelhos são ainda suficientemente misericordiosos ou opacos para nos não devolverem o rosto amarrotado e encolhido das noites sem sono, que os olhos baços animam de desânimo pisco: o excesso de luz do aeroporto impedia-me de me confrontar nos vidros com a minha silhueta hesitante, inclinada como uma cana de pesca para o peixe gordo da mala, com a gravata que as muitas horas de avião haviam decerto desviado da bissectriz dos colarinhos, transformando-a num trapo mole como os relógios de Dali, com as rugas que se acumulavam em torno das pálpebras, à maneira dos vincos concêntricos de areia nos jardins japoneses; entre o homem que voltava sózinho da guerra à sua cidade e caminhava através de cachos de estrangeiros indiferentes, e nós que nos dirigimos para a saída do bar ao longo de um corredor de nucas e perfis cuja monótona diversidade os aproxima dos manequins da Baixa, petrificados em acenos imóveis de uma utilidade patética, há apenas a diferença insignificante de alguns mortos na picada, cadáveres que você não conheceu, as nucas e os perfis nunca viram, os estrangeiros do aeroporto ignoravam, e que, portanto, são inexistentes, inexistentes, percebe?, inexistentes, inexistentes como a sua ternura por mim, esse rápido sorriso sem afecto que quase não chega a nascer, a mão quieta que aceita com indiferença os meus dedos, a coxa inerte que a minha coxa ansiosamente prime. O seu corpo escapa-se-me como os membros se nos escapam com o sexto drunfo, independentemente de nós, flutuando gestos de polvo a que falta o arame de ossos, e por dentro da sua cabeça giram pensamentos indecifráveis de que me sinto expulso, condenado a permanecer, de pé e à espera, no capacho da entrada dos seus soslaios irónicos, à maneira, sabe como é, de uma lata de conservas de que não se tem a chave. Lembra-se dos pescadores de fim-de-semana da Muralha da Marginal, a estenderem toda a noite para o rio o anzolzinho obstinado e feliz? Pois bem, se você pousasse devagar a cabeça no meu ombro, se a sua anca friccionasse a minha até saltar, do encontro de ambas, a chama de sílex de uma erecção contente, se as suas pestanas humedecessem de súbito, ao fitarem-me, de consentimento e abandono, poderíamos talvez achar em nós o mesmo subterrâneo júbilo que a pele contém a custo, o mesmo denso prazer de expectativa e esperança, a mesma alegria que se alimenta de si própria como a manhã devora, nas suas pregas claras, o cintilante coração do dia. Poderíamos envelhecer perto um do outro e da televisão da sala, com a qual constituiríamos os vértices de um triângulo equilátero doméstico protegido pela sombra tutelar do abat-jour de folhas e de uma natureza morta de perdizes e maçãs, melancólica como o sorriso de um cego, e encontrar na garrafa de Drambuie do aparador um antídoto açucarado contra a conformação do reumático. Poderíamos friccionar-nos mutuamente os bicos de papagaio com bálsamo Menopausol, pingar em uníssono, no termo das refeições, as mesmas gotas para a tensão, e aos domingos, depois do cinema, graças ao último beijo do filme indiano do Avis, unirmo-nos em abraços espasmódicos de recém-nascidos, a soprar pelas dentaduras postiças bronquites aflitas de chaleira. E eu, deitado de costas no colchão ortopédico reduzido a uma tábua dura de faquir a fim de prevenir as guinadas da ciática, lembrar-me-ía do jovem saudável e ardente que há muitos anos fui, capaz de repetir sem azia o frango na púcara, para quem o horizonte do futuro não era limitado pela cordilheira dos Andes de um electrocardiograma ameaçador, a regressar da guerra de África para conhecer a filha, numa dessas madrugadas de Novembro tristes como a chuva num pátio de colégio, durante a lição de Matemática.»

3 comentários:

Anónimo disse...

Desenvolvido porquê?

Sara F. Costa disse...

Lol, opá, eu sei que é uma forma estúpida de dizer. Mas enfim, acho que é importante "descomplexar" a ideia de que livros é coisa de um certo nicho de pessoas, quando na verdade é um media como outro qualquer - o mais antigo, com um leque infinito de conteúdos que se dirigem a muitos tipos diferentes de públicos. É útil ter algo com que se entreter durante uma viagem, logo é útil ter oferta de entretenimento à entrada de um comboio/avião, etc. Fácil de transportar e acessível em termos de preço.

Sara F. Costa disse...

Se bem que essa ideia dos livros para intelectuais é uma ideia que já pouca gente tem, felizmente!