No nordeste dos Himalaias, numa casa isolada no sopé do monte Kanchenjunga, vive Jemubhai, um velho juiz amargurado e de mal com o mundo e com todos, que tudo o que quer é reformar-se e ficar na companhia da única criatura a quem é capaz de dar algum afecto, a sua cadela Mutt. No entanto, a chegada inesperada da neta órfã, Sai, abalará o seu sossego, obrigando-o a remexer as suas memórias e a repensar a sensação de estranheza na própria pátria.
Tudo isto se acentuará com o romance entre Sai e Gyan, um nepalês que se envolve numa revolta que alterará inquestionavelmente a vida de Jemubhai.
A serenidade da vida do juiz contrasta com a existência do filho do seu cozinheiro, Biju, que saltita sucessivamente de restaurante em restaurante, em Nova Iorque, à procura de emprego, numa fuga constante aos Serviços de Imigração. Julgando que o filho leva uma vida boa e que acabará por vir resgatá-lo, o cozinheiro vai arrastando os seus dias.
Numa escrita inesgotavelmente rica e complexa, com rasgos de exotismo, a autora retrata temas tão actuais como a globalização, o colonialismo, o racismo, o abismo entre pobres e ricos e a imigração.
Desai, nesta obra que ganha o Man Booker Prize deixa-nos uma escrita de manifesto, típica de alguma pretensão profética e apocalíptica que se atribui correntemente aos autores que surgem numa escrita de envolvimento pós-colonialista e globalizante.
Fala-nos da pobreza da Índia contemporânea e do Império Britânico: a fleuma, os hábitos, a herança duma população colonizada pela aristocracia e funcionalismo britânicos, que, tendo adaptado a luminosidade e o requinte dos modos europeus à mesa e na educação, resvala num barril de pólvora que explode no ódio de Gyan por Sai (depois da paixão cega porque anterior à revelação da extrema injustiça social) e tudo o que esta representa: a indiana colonizadora do Nepal, digna de desprezo, por ser, ela própria, fruto duma sociedade indiana colonizada e pervertida à superioridade britânica.
Através de relatos bastante próximos de um conceito realista (tanto na tentativa de reprodução mimética como de focalização temática - das quais a história do juiz é provavelmente a mais envolvente) é tecida uma manta de retalhos que explica a história da colonização como um jogo de causa e consequência na qual a arte não encontra curas imediatas para soluções essencialmente políticas mas na qual declara e reflecte a condição histórica e temporal e geopolítica espelhada nas vidas singulares das suas personagens.
Referência:
DESAI, Kiran, A Herança do Vazio. Porto: Porto Editora, 1.ª edição, Fevereiro de 2007, 414 pp. (tradução de Vera Falcão Martins; obra original: The Inheritance of Loss, 2006).
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