É uma realidade imutável a de que, quanto mais avança a cogitação sociológica e a reflexão epistemológica, há uma infinidade de factos depressivos que emergem para o plano do nosso conhecimento. Não que a lucidez intelectual tenha que coincidir sempre com o negativismo, mas falando em massas sociais fechadas não há muito por onde abalar esta regra. E isto é facilmente verificável. É verificável, por exemplo, quando aceitamos que há, de facto, em Portugal a propagação de uma mentalidade herdada dos tempos salazaristas. Ou talvez anterior. Não se sabe ao certo. A verdade é que 48 anos de regime ditatorial a opor-se ao conhecimento são sempre 48 anos de regime ditatorial a opor-se ao conhecimento. E no entanto, depois do 25 de Abril, parece que um grande perdão se abateu sobre este espaço agora branco, agora enevoado.
Enevoado esse que se traduz na não-inscrição que se apodera de uma forma globalizante da vida dos Portugueses, enquanto entidade plural, mas, sobretudo, enquanto entidade sobre a qual se pode reflectir.
A questão é que parece que pouco ou nada mudou. O medo, a irresponsabilidade, surgem como aspectos primordiais dos comportamentos dos portugueses. Para onde escorreu a existência individual? E que existência era essa, a que se movia dentro da máxima humildade do máximo despercebimento, que se viria inscrever na perpetuação das almas – numa visão católica, própria de Salazar.
É aqui que reside a inércia, é aqui que ela se expande e faz dos portugueses seres virados para dentro de si próprios. Inalteráveis, adaptando-se ao exterior, ao que acontece fora de si como se fosse parte de um si natural, conformado. Como um corpo de plasticina que trava os objectos contra ele atirados e se apropria deles de uma forma natural, orgânica. Uma assimilação e uma acomodação de um brando estímulo.
Como no telejornal. Os cinquenta palestinianos mortos equilibram-se com o nascimento de um panda bebé na China. O jornalista diz «é a vida» e o português prossegue o seu quotidiano de imagens, a sua existência enquanto imagem nos outros. «É a vida» diz o locutor, e é esta mistura de transcendência-imanência da nossa vida à Vida que provoca um nevoeiro no espírito.
E há zonas de sombra, pontos imperceptíveis de ligação de forças que se distribuem pelo chamado “espaço público” em Portugal. Sabemos, à partida, que uma obra de arte ou um livro não sofrerão devires nem mutações nas várias leituras, nos vários corpos que percorrem pelo simples facto de que em Portugal não existe uma mediação entre o público e o autor.
Dificilmente um autor terá a alegria de sentir que a sua obra deixou de ser sua. A única possibilidade de mediação é o crítico literário em determinado jornal ou revista. Mas não há um sítio para vozes anónimas porque a liberdade que existe no nosso espaço público é fictícia e guiada pelo prestígio mediático. Há fulano X a insultar fulano Y ou, o mais recorrente, fulano H a trocar galhardetes com fulano T, sobrevalorizando o outro a partir do seu jornal ou, como acontece muitas vezes, dentro do mesmo jornal.
Assim, sendo o espaço publico fechado, limitando-se a ele mesmo cria a bipolaridade do real.
Por um lado tudo acontece no seu mundo, no seu país ou na sua cidade. Por outro, o sentido da abertura das imagens que se lhe apresentam já está ditado confirmando o pensamento do português antes de este o ter.
Assim todos os acontecimentos existem para serem comunicados. Nunca para eclodirem no curso da vida. E é assim a vida!
Recomento acima de tudo a leitura urgente de um dos melhores ensaios já escritos em português sobre Portugal, o livro de José Gil "Portugal Hoje: O Medo de Existir" (Relógio d'Água, 2004)
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