segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A Primavera Árabe, Dois Anos Depois


O que acontece passado dois anos do início da Primavera Árabe? Algo ficou realmente diferente? Será que houve a transformação de paradigma que tantos de nós esperavam? Será que se pode falar em Excepcionalismo Árabe?
As teorias positivistas das RI levam-nos a crer que o que existia antigamente serve para compreender a realidade, mas isso não se aplica neste caso ao norte de África e Médio Oriente. Um dos principais motivos é o facto de não ter ainda havido a aprovação de novos textos constitucionais. Temos instituições representativas mas para já não podemos falar em transformação uma vez que corremos o risco de um retrocesso. Na chamada Primavera Árabe cada caso foi um caso, e a designação genérica que lhe aplicamos soa mais à expansão de um nacionalismo árabe do que àquilo que realmente foi: uma série de revoltas populares. Temos assim um conceito aglutinador que permite a identificação de um conjunto de processos de contestação, porém limita a compreensão dos casos e especificidades. Apesar de outros levantamentos dispersos (Marrocos, Líbano, Sudão), esta revolta teve uma incidência inquestionável na Tunísia, no Egito, na Líbia, no Iémen e na Síria.  Uma reflexão mais alargada deveria ser feita quanto às autocracias liberais que constituem a maior parte destes regimes.
O Médio Oriente está dominado por autocracias liberais e por liberais entenda-se economicamente seguidoras dos preceitos do Acordo de Washington de 89. São regimes onde existe um conjunto de fatores interdependentes - institucionais, ideológicos, assim como uma ecologia adaptável à repressão, controlo e abertura parcial.
Daniel Brumberg em "Islamists and Identity Politics in the Arab Spring" defende que a ideologia, a religião mas sobretudo o nacionalismo árabe, diminui a possibilidade de promoção de pensamento alternativo.


Uma noção muito enraizada de legitimidade e subserviência contida nos regimes islâmicos e um sentido de liderança descentralizado não contribuem para a diversidade de pensamentos. Questão vai da Mauritânia-Marrocos até ao espaço geográfico concebido como Médio Oriente - deparamo-nos com estados profundamente centralizados no seu limite, existindo ou não uma estrutura de estado, existe certamente uma centralização da estrutura social. Para além destes elementos, algo a ter em conta é a dimensão geoestratégica entre promoção da democratização e ao mesmo tempo apoio a ditaduras. Não tendo válvulas de escape, estes aspetos são difíceis de gerir - o que pode explicar o que faz sobreviver uma ditadura nesta zona durante 30 a 40 anos. Uma vez que a legitimidade e o poder provém de uma esfera religiosa, ela não está nos cidadãos. De acordo com o Corão, quando os cidadãos percebem que o líder não está a cumprir com as suas responsabilidades do ponto de vista dos preceitos do Islão, podem derrubar o líder: teremos aqui o enquadramento teórico que despoletou mimetismos depois do mártir Mohamed Bouazizi?


A grande diferença entre estados com recursos energéticos e estados sem eles, condiciona enormemente o aparelho externo, isto é, condiciona os seus apoios e refiro-me tanto a apoios de outros estados - Europa, EUA, China - como dos intervencionismos de organizações como a ONU.
A condicionalidade política traduz-se da seguinte forma: quanto mais positivo for o comportamento nas práticas de governação - maior o financiamento. O acordo de paz entre os EUA e o Egito liberta muito dinheiro para o Egito que vive do turismo, das matérias primas, e não tem recursos. O aparelho externo torna-se mais significativo e este apoio estratégico dos EUA sempre controlou os apoio a zonas tão americo-convenientes como Israel. A história das Revoluções Árabes veio pelo menos afetar positivamente esse relacionamento, mesmo que a mudança de paradigma não se possa considerar de todo. Por pressão externa foi criada uma narrativa de legitimação dos estados. 
A circulação a toda a luz da informação dos últimos vinte anos obriga as lideranças políticas a tomarem medidas preventivas em troca de apoio político ou financiamento. A internet e as redes sociais têm o seu papel neste panorama mas ainda não chegam a toda a gente - terá sido mais a criação da estação televisiva Al Jazeera a possibilitar o olhar para fora e a comparação entre modos de viver completamente discrepantes e essencialmente revoltosamente desiguais.



As vulnerabilidades dos regimes por riscos e tensões internas tem consequências imprevisíveis. O Desenvolvimento Humano Árabe indicava que a PA estava prestes a acontecer e são estes meios de comunicação que permitem a mimetização de comportamentos - a capacidade de contaminação das revoltas populares. 
Contudo, como as revoltas não tiveram motivações partidária há uma enorme dificuldade destes partidos políticos existentes assimilarem os mecanismos de contestação pois estes são atos altamente desorganizados. Isso é particularmente visível na Líbia. A revolução na Líbia não tinha qualquer carater associativo, nem do ponto de vista religioso e face a essa desorganização desmorona-se o ideal de qualquer revolta, que é transformá-la numa estrutura governativa.


As monarquias da Jordânia e Marrocos não são afetadas de forma tão brutal devido às suas ações preventivas - com alteração de leis, controlo dos mercados, permissão de entrada condicionada no sistema representativo, etc. No caso da Arábia Saudita e dos Países do Golfo e descontentamento socio-económico não se verifica já que os príncipes do petróleo mantêm a população controlada, o que não acontece na Tunísia ou no Egito, onde os níveis de contestação são elevadíssimos.
Permanece a questão, é a falta de liberalismo da Síria e Líbia faz com que o conflito continue? Se acreditarmos são que os pressuposto para existência de processos de democratização passam por desenvolvimento, classe média e cultura cívica, provavelmente encararemos essa tese da paz pelo comércio como viável, contudo tendo a questionar todos estes pressupostos, sobretudo os que ao liberalismo dizem respeito ainda que compreenda o argumento face à globalização da economia. De uma maneira ou de outra, não parece a mudança de paradigma se tenha feito sentir de uma maneira total nos países mediterrânicos mas a história continua. É aguardar que o tempo a dite. Mas a nossa expectativa de que estes regimes se tornassem democracias liberais ao modo ocidental foram expectativas erradas e que revelam fragilidades do nosso lado.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Miguel Gonçalves e o empreendedorismo de cordel

Como dizia o meu Professor José Manuel Pureza, citando um amigo "Confiança é acordar todos os dias e achar que a troika está mesmo a ajudar o país." Ámen


Miguel Gonçalves é um fulano com o QI de uma ervilha que anda a vender cursos de auto-estima de empreendedorismo de cordel. Organiza uma treta tipo the biggest looser mas para criação de empresas que até agora nunca ninguém ouviu falar, tipo vencedor dos ídolos, alguém vai ser o próximo ídolo de Portugal mas passadas várias edições nunca ninguém ouve mais falar dos vencedores. É o aproveitamento do desespero. É isto e a ACN. O problema é conhecê-lo pessoalmente e saber o quão  néscio é o sujeito. E não estou para usar argumentos requintados. É um parolo de primeira.

Já tive oportunidade de falar sobre as influências de grupo numa reflexão mais ampla posts abaixo.

Já participei numa formação de "coaching" no âmbito de um curso de Recursos Humanos e Organização Empresarial, eu pessoalmente saí com vómitos depois daquela pseudo-formação para nos tornarmos gurus da auto-estima mas no campo do empreendedorismo de cordel. Acho fabulosos os casos de sucesso que o jornalismo traz para as reportagens sobre artesanato e confeção de bolos. Pensar em criar consciência política e económica é demasiado arriscado para o plano neo-liberal do norte. Vamos pôs uns pins nuns calções e vender num blog e ser empresários. 

Cito alguém que se expressava no Facebook deixando a sua identidade anónima:

"O Charlatão de Braga ganhou o seu documentário messiânico na SIC. O Poder do empreendedorismo com sotaque de Minhoto esconde mal a realidade de um estudante de psicologia a surfar na onda do coaching de banalidades num país devastado pela falta de emprego. A Proximidade e conhecimento mais pessoal que tenho deste individuo fazem-me de facto pensar na forma como a televisão pode criar ídolos e colocar na ribalta os arrivistas mais vulgarmente pintados pela simples necessidade de preencher a lista de rótulos. São estes despertares que de facto nos desligam dessa assimilação inquestionável da narrativa da comunicação social e nos obrigam a questionar mais aquilo que aceitamos sem nos apercebemos. Questionem-se, fora os políticos, quais são as personalidades questionadas sobre as palavras que formulam?"




domingo, 4 de novembro de 2012

“Heart of darkness” de Joseph Conrad



“Heart of Darkness” de Joseph Conrad, publicado em três fases durante o início do século XX, é um livro razoavelmente curto mas canónico na tradição literária dita ocidental.
            Às multiplas camadas de narrativa junta-se uma linguagem visceral frequentemente sensorial e que nos descreve um universo pouco colorido, dir-se-ia mesmo um universo onde a luz é inetivalmente absorvida. Para além das qualidades literárias intrínsecas da forma, o impetuoso simbolismo da mensagem justifica esta canonização. Esta jornada a lugares considerados exóticos não ganha proporções épicas mas antes ilustra o nengrume presente na perceção de Marlow face ao conhecimento de um mítico reinado instaurado por “Kurtz” um homem “de elevado gosto e espantosa eloquência”. 
Heart of Darkness é baseado numa jornada do próprio Joseph Conrad ao Congo como comandante marítimo.Em 1878, as entidades belgas que colonizavam o Congo com pretextos supostamente filantrópicos para o desenvolvimento rural anunciam a criação de um novo estado, o Estado Livre do Congo. Na realidade, tudo não passava de um esquema montado por Leopoldo II para a exploração do marfim. O povo local era sistematicamente roubado, escravizado e sujeito a trabalho forçado nas minas. Aqueles que não trabalhassem devidamente eram punidos com amputações de membros. Centenas de milhares de escravos morriam devido a exaustão, doença ou fome.

Grande parte do interesse da obra de Conrad deve-se ao seu enquadramento temporal. Em 1902, o termo “racismo” não tinha sequer uma conotação pejorativa. No entanto, no seu livro encontramos o narrador Marlow a refletir várias vezes sobre a possível humanidade presente “naquelas criaturas”:They were not enemies, they were not criminals, they were nothing earthly now, nothing but black shadows of disease and starvation, lying confusedly in the greenish gloom. (Conrad 14)
O reino de Kurtz, instaurado sobre o pretexto de uma suposta civilização dos povos face à presumivel superioridade europeia torna-se num conto fantasmagórico na qual o conceito de civilização é invertdo. Perante a ausência de lei, o reinado que Kurtz pensava controlar estava antes a controlá-lo a ele num ilusionismo febril. Fora do seu estado de princípios, Kurtz implementa o mais primitivo dos sistemas mas considera-se a ele superior porque a lei dos homens não se confunde com a lei primitiva da natureza. Contudo, é do reconhecimento dos ocupantes de que “ali não há leis” e que“podemos matar se necessário”.  A selvajaria é assim instaurada pelos mensageiros da civilização, por homens brancos de estados hegemónicos.
Este regresso à selvajaria relembra outro clássico, o posterior “Lord of the flies” de William Golding. Em ambas as obras a reflexão sobre civilização e selvajaria demonstra que a assunção de superioridade cultural e civilizacional é facilmente posta em causa aquando da ausência de regulações e imperativos externos. A terra de ninguém é assim a terra da lei do mais forte.
A viagem ao coração das trevas é na realidade uma viagem ao lado mais sombrio do coração humano.



Conrad, Joseph, Heart of Darkness, first published in 1902, published in Penguin Classics1994

sábado, 3 de novembro de 2012

A paz e a violência


A paz e a violência de acordo com a tradição moderna






A solidez do sistema internacional depende em larga medida da eventualidade de um confronto ou da possibilidade da manutenção da paz. Para Donald Kagan, de acordo com uma análise histórica comparatista que levou a cabo, a guerra é o resultado de uma competição pelo poder. Contudo, o conflito não se pode reduzir exclusivamente à competição, uma vez que ele ocorre efetivamente quando uma parte pretende alcançar os seus objetivos prejudicando a outra.  
A noção de conflito foi muitas vezes enunciada numa narrativa que tende a cair numa abordagem realista e Hobbesiana que relata um ciclo conflituoso e, consequentemente, uma narrativa do conflito. Na perspectiva de Maria Raquel Freire e Paula Duarte Lopes “This narrative confines and directs strategies, instruments and actors to conflict. For peace studies, violence is the problem, but if the framework of action is bounded and rooted in conflict, the outcomes can hardly be framed outside a conflict-oriented narrative”. [i]
O discurso do conflito tende, portanto, a substituir o discurso da violência. Isto é, a violência deve ser encarada como um continuum. Esse continuum de pazes e violências possui um carater facultativo, depende de uma escolha de implementação de uma ou outra cultura, sendo a cultura da paz o objetivo primordial como “a virtue, a state of mind, a disposition for benevolence, confidence, justice” nas palavras de Baruch Spinoza (1670).
Neste ensaio pretendo analisar as conceções de paz e violência à luz das teorias dominantes das relações internacionais, as quais intitulei de “tradição moderna”.
Se, por um lado, o tratado de Vestefália conferiu aos estados um papel central e soberano na compreensão das relações internacionais, por outro, os estudos da paz colocam em causa esse consenso da elaboração do terreno pacífico como aquele que apenas é intrínseco ao sistema estatal.
Refiro-me a consenso porque essa definição é transversal às duas principais correntes da tradição moderna das Relações Internacionais: o realismo e o liberalismo. Estas duas escolas de pensamento continuam a oferecer perspetivas acerca do comportamento dos estados e respetivas consequências na manutenção da paz.

Por um lado, os liberais advogam a liberdade individual, acreditando na conceção rousseana de que os homens são bons por natureza. O foco principal reside assim no individualismo, nos direitos humanos, na universilidade, no desapego à autoridade, no tratamento igualitário perante a lei e na liberdade pela ação social. Mantém um elevado nível de otimismo e confiança. Intimamente relacionada com a teoria liberal encontra-se a teoria da paz democrática e a crença nas democracias representativas. Várias teorias liberais apontam ainda para a relação da paz com o crescimento económico e defendem vincadamente a liberdade para a ação económica independente de qualquer interferência do estado (Fukuyama, 1992, p.44). A paz é nesta perspetiva descrita por Oliver P. Richmond como refletindo o pensamento Augustiano da “tranquilidade da ordem”, realçando a contradição Hobbesiana em conter o estado natutal do homem e realçando o projeto enunciado por Quincy Wright, para quem a paz é representada por um comunidade onde a lei e a ordem prevalecem.[ii] Para além do mais, a paz liberal reclama para si o estatuto de ideal platónico que dá a forma a um imperativo kantiano.
Por outro lado, a proposta realista assume uma visão mais pessimista em relação à natureza humana. Ainda Oliver P. Richmond na sua “epistemologia negativa” refere-se à corrente realista concebendo a paz como episódica, momentânea. Realça ainda que a paz só é paz para o vencedor e que esta só é alcançável pela hegemonia e garantida pela força. Paz é neste sentido uma expressão de poder. É muitas vezes referida como uma paz negativa, uma vez que a sua definição se prende com o silêncio das armas, isto é, a ausência de conflito aberto. Grandes vultos do realismo dos anos 40 e 50 do século XX chegam mesmo a estar filiados a uma visão marxista da sociedade.
O continuum de pazes e violências deve assim ser gerido de forma a evitar o confronto, ou seja, a guerra. Um dos grandes desafios dos teóricos, realistas, liberais ou neo-neo é o de tentar decifrar no tecido heterogéneo da história padrões explicativos das causas de conduzem à guerra.

Apesar de todos os debates e divergências teóricas em torno destas correntes, elas acabam por convergir quanto à assunção estato-cêntrica das relações internacionais. Todas encaram os estados como unidades pacíficas e o campo externo, o território internacional como o domínio da guerra, aquele onde não existem contratos sociais e onde o caos e a anarquia predominam. Esta é a raiz comum destes dois pensamentos, aquela em que a política como paz se opõe às relações internacionais como guerra.  
Os estudos da paz, no entanto, demarcam-se desta tradição moderna, recusando assim a aceção de que a condição humana nos entrega a um estado de conflito permanente. Este tipo de pensamento comum a Hobbes, Rosseau, Voltaire e Kant remete-nos para o princípio de que se todos aspiramos ao mesmo, então a possibilidade de conflito é infinita. 
Quando Johan Galtung menciona o triângulo da violência e da paz[iii], encontramo-nos perante uma abordagem que é transnacional, isto é, os estudos da paz distinguem-se dos estudos da segurança e estratégia por estes terem a premissa de que a guerra e o conflito são uma constante a ser gerida e mitigada.




Na obra de Kenneth N. Waltz, Man, the State and War, o autor refere três níveis de análise recorrentes no estudo das causas da guerra. A primeira prende-se com aqueles que procuram a explicação da guerra na natureza humana. Na segunda procura-se uma explicação que atravesse a estrutura interna do estado sendo possível incluir neste grupo os liberais e os marxistas-leninistas. Os primeiros por acreditarem, como já mencionado, que a democracia conduz à paz e os segundos por acreditarem que é a ideologia socialista que conduz à paz enquanto o capitalismo fomenta a guerra. O terceiro nível de análise é aquele muitas vezes incorporado no neo-realismo, já supramencionado que encara o sistema internacional como anárquico, carente de organização que torna a expectativa de guerra uma inevitabilidade. As teorias de Waltz baseiam-se na terceira imagem e também elas transcendem a organização essencialmente estato-cêntrica do panorama internacional. Isto porque, por exemplo, o comportamento criminal de indivíduos isolados pode ser considerado uma forma de conflito violento. As ideias de Waltz vão neste sentido ao encontro da noção de que a paz é um processo holístico passível de existir quando condições básicas se encontram asseguradas. Para além disso segue as mesmas diretrizes do ensaio de Freire, M. R. And Lopes, P. D., pois encara o processo da promoção da paz, construção da paz e manutenção da paz como uma rede interdependente mas não como uma premissa sequêncial que segue uma única direção. O continuum de pazes e violências pode estar apresente até em contextos formais de paz. O conflito não tem porque se transformar em conduta violenta e pode ser prosseguido por meios políticos, económicos, psicológicos e sociais menos evidentes.
Tendo já enquadrado a perceção da paz nas diferentes abordagens teóricas, debruçar-me-ei sobre uma análise fugaz a alguma formas associativas da violência. Como já mencionado, a violência deve substituir a noção de conflitualidade típico à narrativa do conflito. Podemos, contudo, falar de uma abordagem cultural à violência. Quando Huntington escreve “O Choque de Civilizações” promove uma ideia que se baseia no confronto inevitável do Homem devido ao seu crescimento civilizacional isolado, estando esta matriz civilizacional relacionada segundo os teóricos do choque essencialmente com os valores religiosos dos vários povos. Vários críticos da teoria do choque de civilizações realçaram o carater anti-humanista da teoria. A história legitima a vontade genuína da aproximação das civilizações mais do que do seu choque. Desde Marco Polo e as suas longas viagens pela compreensão humana até aos missionários italianos e portugueses que tentaram encontrar pontes de ligação entre o cristianismo e o budismo no sul da China, as civilizações tendem para um entendimento mais do que para o confronto,  ainda que possamos considerar que a insatisfação generalizada possa conduzir a uma elevada suscetibilidade à propaganda e isso provoque confrontos como os ocorridos entre muçulmanos e hindus no anos 40 do século XX e ou Sérvios e Albaneses na antiga Jugoslávia.
Amartya Sen em “Violence, identity and poverty” trata desta abordagem teórica à violência pelo choque de civilizações mas relaciona outro fator de relevo, o económico. De facto, negar a associação da violência a contextos de exclusão social e económica torna-se uma tarefa difícil. O deterioramento do estado social encontra-se muitas vezes relacionado com o aumento dos níveis da criminalidade. Quando no início de Março do ano passado a primavera árabe ou a revolução do jasmim, como lhe chamaram os tunísios se deu, podemos afirmar que não foi exclusivamente devido a um choque civilizacional de cariz religioso mas antes uma sucessão de protestos relacionados com as condições de vida das populações de vários estados árabes. O fenómeno das favelas ou dos estados-satélite no Brasil onde o crime organizado se instalou de uma forma quase impenetrável, torna possível associar os estados de violência aos elevados níveis de pobreza e de profundo contraste social presentes nestes espaços. Claro que estes motivos não se podem valer por si só e muitas implicações sociologicas, políticas, factores sociais e culturais ajudam a agravar cada situação, salvaguardando toda a sua especificidade – isto porque o discurso da relação pobreza com violência pode conduzir a um uso manipulatório da retórica política, tentando apelar ao medo da violência dela proveniente e não aos valores éticos que em si encerram estas situações. Sen dá-nos o exemplo de Kolkata onde as elevadas taxas de pobreza não conduzem necessariamente a estados agravados de violência.  
A paz e a violência adquirem diferentes formas de acordo com os diversos enquadramentos teóricos e os diversos factores de análise. Os estudos da paz devem por isso refletir sobre o seu propósito e tentar transpôr a tradição, numa tentativa de enquadramento da definição da paz numa altenartiva pós-moderna, transversal e transnacional.





[i] Freire, M. R. And Lopes, P. D. (2009) “Rethinking Peace and Violence: New Dimensions an New Strategies”, in P. D. Lopes and S. Ryan (eds.) Rethinking Peace and Security: New Dimension, Strategies and Actors. Bilbao: University of Deusto, 13-29
Fukuyama. F. (1992) The end of history and the last man. New York: Macmillan, Inc.
[ii] Richmond, O. 2006, “The problem of peace: understanding the “liberal peace””, Conflict, Security & Development, 6(3), October 2006.
[iii] Johann Galtung define a concomitância de uma violência cultural (produção de ideias justificativas das demais violências) com a paz cultural (cooperação e comiseração com todas as formas de vida); da violência direta (eliminação física do outro) com a paz direta (formas de controlo não-violentas, com sanções positivas); e da violência estrutural mecanismos sistémicos de injustiça e morte) com a paz estrutural (satisfação das necessidades básicas e distribuição de bens e serviços);


Referências
Galtung, J. (1969), “Violence, peace and peace research”, Journal of Peace Research, 6 (3), 167-191
Hobbes, T. (1985). Leviathan. London: Penguin Classics
Huntington, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial, Objetiva, 1996
JAMES, E./PLATZGRAFF, Robert, As Relações Internacionais: as teorias em confronto, Lisboa, Gradiva, 2003.
Jehangir, Hamza, (2012) Realism, Liberalism and the Possibilities of Peace, e-International Relations http://www.e-ir.info/2012/02/19/realism-liberalism-and-the-possibilities-of-peace/ acedido a 23 de Outubro de 2012
Kelsen, H. (1944), Peace through law, Chapel Hill: University of North Carolina Press (trad. castelhana pubicada em Madrid: Editorial Trotta, 2003) 
Kagan, Donald, On the Origins of War and the Preservation of Peace, Nova Iorque, Doubleday, 1995, pp. 1-11 e 569
Richmond, O. (2008), “Marxist agendas for peace: towards peace as social justice and emancipation”, in O. Richmond, Peace in International Relations. Londres: Routledge, pp. 58-72
Sen, A. (2008) “Violence, identity and poverty”, Journal of Peace Research, 45 (1), 5-15.
Spinoza, Baruch,  Theological Political Treatise, 1670
Waltz, Kenneth N. Man, the State and the War: A Theoretical Analysis, Nova Iorque, Columbia University Press, 1959, caps. 2 e 4 Waltz, Kenneth (1967), “The politics of peace”, International Studies Quarterly,  11 (3),  pp. 199-211
Wiberg, H. (2005), “Investigação para a paz: passado, presente e futuro”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 71, 21-42.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Conferência "Pontes" Europa / China





A Conferência


Ao longo dos últimos anos, o Instituto Politécnico de Leiria (IPL) tem vindo a desenvolver atividades no domínio das línguas e culturas, com particular relevo para o ensino-aprendizagem das línguas e culturas portuguesa e chinesa, concretizado em colaboração com o Instituto Politécnico de Macau (IPM) e com a Beijing Language and Culture University (BLCU). A colaboração que tem vindo a ser posta em prática entre estas instituições permite criar espaços que potenciam a troca de conhecimentos e experiências e o alargamento do diálogo a outras pessoas e instituições que desenvolvem a sua ação neste domínio.
No atual contexto nacional e internacional, verifica-se uma crescente aproximação entre a Europa e a China, que coloca em evidência o muito que une e separa estes povos, não só a nível linguístico, mas também nos domínios cultural e social. Com línguas e culturas significativamente diferentes, são estabelecidas diariamente, através da aprendizagem da língua do outro e da vivência dos usos e costumes tão próprios de cada cultura, pontes de intercompreensão que importa fomentar. O aprofundamento do diálogo entre as pessoas e instituições permitirá fortalecer as pontes que unem os povos e as culturas.
A 1.ª Conferência Internacional “Pontes EUROPA-CHINA” visa trazer à mesma mesa investigadores, docentes, estudantes e demais pessoas com interesse na área, para a partilha de conhecimentos sobre temas tão abrangentes quanto a(s) língua(s), a(s) cultura(s), o ensino/aprendizagem e a tradução/interpretação no contexto do desenvolvimento das relações Europa – China.

Objetivos
• Promover formas de cooperação e conhecimento mútuo entre a Europa e a China.
• Partilhar experiências no domínio do ensino/aprendizagem das línguas e culturas europeias e chinesas;
• Criar um fórum de reflexão sobre questões ligadas às línguas e culturas europeias e chinesas;
• Refletir sobre modelos de formação no contexto das relações Europa -China;
• Questionar práticas de mediação linguística e cultural (línguas e culturas europeias e chinesas).

Temas:
Cultura(s); Língua(s); Tradução / Interpretação; Didática

Línguas de Trabalho: 
português, mandarim, inglês

Comissão Organizadora:Luís Filipe BARBEIRO
Choi WAI HAO
Sara COSTA
Maria José GAMBOA
Josélia NEVES
Cristina NOBRE
Susana NUNES
Yu XIANG
Sui YAN

Mais informações: http://pontes.ipleiria.pt/

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Mad Women

O meu problema em ser imatura, inapropriada e arrivista é que isso me soa divertido. 



Felizmente, aquando da minha manifesta simpatia por uma personagem geralmente repulsiva alguém me disse: "ah, por momentos parecia estar a ler o diário secreto da Peggy", subitamente achei que afinal as coisas estavam no sítio certo! 


terça-feira, 17 de abril de 2012

quarta-feira, 4 de abril de 2012

A liderança, back to Lord of the Flies

Já tentaram dominar um grupo de pessoas? Um grupo de amigos, um grupo de colegas, um grupo de trabalho. Felizmente nem todos vivemos segundo os moldes culturais americanos e não crescemos com noções claras sobre popularidade mas hoje em dia fala-se muito em empreendedorismo e liderança.


 Eu questiono-me, o que é realmente vital para que a liderança ocorra? Tive recentemente o desafio de criar um método de educação não formal que se enquadrasse no plano da democracia/cidadania. No meu grupo de trabalho alguém sugeriu ter-se como base a história de Lord of the Flies. Um grupo de pessoas encontra-se isolado numa ilha depois de um acidente de avião e diferentes pequenos grupos seguem diferentes lideranças. Para isto dávamos-lhes instruções. A ideia era termos por detrás vários backgrounds ideológicos ou diferentes estruturas de organização social mas dissimulados por uma breve descrição. Para que o role play tivesse mais piada, cada grupo teria diferentes recursos interdependentes, o que faria com que tivessem que chegar a um acordo em relação à liderança. Enfim, acabou por se testar o método que se revelou bastante pedagógico para os envolvidos. Já tínhamos previsto no grupo de trabalho possíveis associações – será que os teocráticos se juntam à democracia, será que os ecologistas cedem à ditadura, no grupo experimental a maioria dos participantes estava com dificuldade em compreender a diferença do grupo no qual nos inspiramos para a democracia e do grupo no qual nos inspirámos para ditadura (de contornos comunistas). Curioso.



Na realidade, no livro que nos deu este fundo teórico apercebemo-nos que quando confrontados com a estaca zero civilizacional, um grupo com frágeis reflexos sociais (como o são as crianças) facilmente cede à selvajaria. Claro que o objetivo deste método em particular era o de instruir para a cidadania e transmitir valores democráticos, preferencialmente aqueles que temos como basilares no velho continente.

Mas do social salto para o pessoal e é tão fácil apercebermo-nos que esse instinto selvagem de cedência ao simples e ao imediato é absolutamente presente. É interessante observar alguém que tenha um instinto natural para a liderança ou, pelo menos, para exercer influência sobre os outros. A forma como o populismo está presente, as ideias fortes deixam de ser assim tão fortes, o controlo das emoções, a compreensão empática da emoção dos outros e a racionalização da resposta esperada. Nada disto constitui o arsenal de conhecimento intelectual que nos fazem acreditar ser o conteúdo essencial para a liderança. Tudo isto requer muita possibilidade de prática mas no meu íntimo tenho a certeza de que há situações de completa impossibilidade. A capacidade de manipular é demasiado instintiva e dificilmente racionalizável. É por isso que esta obra é tão claramente fascinante.
Uma vez que o Piggy representa o espírito intelectual e lúcido dos bastiões da nossa construção social, o verdadeiro líder Ralph tem que ceder muito mais ao espírito massificado e funcionar com base numa certa condescendência. De outra forma, o líder intelectual é automaticamente suprimido pelo líder emocional, aquele que dirige as emoções e que pode (e que o faz tendencialmente) conduzir o grupo para a dissonância – como se diz em termos de inteligência emocional – apatia, paralisação e união pelo ódio. É o que faz o Jack. Bom, depois de ler uma obra destas e com algum espírito crítico e reflexivo facilmente chegamos a estas conclusões e por isso estes cursos intensivos em voga de “coaching” acabem por ser, honestamente, inúteis. Mas como quero manter um bom espírito de liderança, não vou fazer propaganda negativa que possa prejudicar os meus amigos psicólogos. 



Agora a minha reflexão em juntar o plano do psicológico com o da ascensão social ao qual a liderança pode levar, seja em termos políticos ou apenas dentro da nossa empresa ou instituição é o de que, o que é necessário não é necessariamente o que é ensinado.
É uma observação óbvia de se fazer mas menos fácil de expor analiticamente ou que requer pelo menos alguma disponibilidade mental para pensar sobre o que nos rodeia, o que acaba por ser algo que faço instintivamente e não porque tenha alguma meta delineada que me leve a fazê-lo. Isto reflete uma das características de Jack porque o verdadeiro líder é aquele que embarca o grupo naquilo que ele faz por instinto e puro prazer – o dele era caçar, matar, o bloodlust de que nos fala o livro. Mas podia ser outra coisa qualquer.
Na realidade, ter que obedecer a imposições e regras não é propriamente a coisa mais divertida de sempre e isso sente-se. É por isso que, à parte de todas as análises deste livro que é estudado em todas as escolas dos países anglo-saxónicos, a interpretação não é assim tão linear em reconhecer o bom e o mau. Isto porque o bom é alguém que não deixa de estar inserido num sistema e num formato.

Será que há algo de Jack em qualquer pessoa com tendência natural para a liderança? A ideia de símbolo, a noção de pertença/outcast.
É por isso que quando Jack começa a tentar camuflar-se na natureza com as suas pinturas faciais adquire um simbolismo de estilo a que ninguém consegue escapar o fascínio, a noção de pertença através de símbolos que nos fazem sentir maior do que nós, numa profunda ilusão de poder (bem representado mesmo no filme dos 90, o menos apreciado dos dois). Se virmos de um ponto de vista externo, quantos povos se definem por símbolos religiosos, quantas tribos recorrem à exuberância facial de guerra que os camufla com a natureza mas que os define de forma exclusiva para os unir como um grupo.
Quando estão num grupo de amigos e alguém tem um claro sentido de liderança que toca a ambição e a obsessão e o prazer pelo domínio, nunca repararam no tipo de sinais mais ou menos evidentes que surgem como que símbolos que nos identificam como pertencentes ou não? Coisas simples e simbólicas podem começar a minar a criação de subgrupos. Será chocante vermos em nós ou nos que nos rodeiam o poder manipulador que Jack representa?



Talvez esta linha de pensamento que se debruça sobre o descrédito pela ordem pré-definida em prol de uma lógica de poder e de submissão ao poder, no conduzisse a ideias como as da anarquia ou do niilismo no sentido filosófico para nos opormos a isto. Se não há regras e nada faz sentido então não há qualquer motivo para se acreditar na existência. Contudo, há na personagem de Simon uma esperança no valor intrínseco do Homem, a crença na possibilidade de se poder ser genuinamente bom, ou seja, aquilo que entendemos em termos de rótulo por humanismo. Simon é o primeiro a questionar o elemento de medo criado pelo sistema opressor de Jack, a existência de um monstro – o tal elemento externo que reforça o interno. Simon é aquele que não acredita na besta, é absolutamente destemido porque não acredita que tenha muito mais a perder, não acreditar em nada pode também traduzir-se por uma coragem movedora. No livro, este ser em comunhão com a sua essência é destruído pela brutalidade do grupo alienado. Uma prova de que sem a liderança correta, tudo pode ficar negro.



Há quem tenha recentemente comentado a semelhança deste livro com o recente The Hunger Games – que inevitavelmente vem associado ao Battle Royale. Mas não vejo o porquê da relação. Provavelmente só fazem este paralelismo para abordar o tópico das definições das idades da audiência em que os argumentos passam por: “Já que deixamos as nossas crianças analisarem na escola livros como Lord of the Flies, porque não deixá-las ver o The Hunger Games?” Na realidade, nem HG nem BR têm muito em comum com LOTF. Os primeiros têm em comum a crítica mediática, o conflito geracional, a ulta exposição e o sadismo de uma sociedade orientada para uma glamourização da violência. LOTF é uma reflexão pura sobre as dinâmicas de grupo e a fragilidade dos nossos sistemas democráticos, consensualmente os melhores ainda que, em perspetiva, ainda não perfeitos.



A reflexão real é em que medida esta luta pela liderança não é apenas mais uma forma de integrar um sistema perante o qual espíritos críticos vêem necessidade de reforma. Alimentar a noção de competitividade como solução, é de facto um caminho viável? Até que ponto precisamos da condescendia e, acima de tudo, até que ponto precisamos de ordem e até onde pode ir o nosso caos se ele representar uma superioridade intelectual definida – dialética de Marx, (não marxismo) ? Uma coisa é certa, sinto-me inserida numa linha de pensamento que se expressa por um lado pelo idealismo e por outro pelo pragmatismo decorrente da condição humana efémera, sem que dela derive um incontornável egoísmo já que há um sentido de comunidade que nos é intrinsecamente necessário. E quanto mais tentamos anular o nosso ego, é quando ele mais parece brilhar. É por isso que de todos os elementos representados no livro, o Simon é provavelmente aquele que me descreveria embora em quase tudo o que faço as reações convergem para o líder socialmente equilibrado que é Ralph. É o meu nível de fachada, é o meu nível de fazer o menos pior, num mundo onde o idealismo acaba por ser fatalmente confrontado com a morte da inocência.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Os conflitos internacionais e a moda



Quando passo em frente à sede do Bloco de Esquerda em Leiria penso sempre no quão talentoso é o partido para arranjar humoristas e designers. O merchandise é pormenorizado. T-shirts, pins e panfletos em geral satirizam situações e tentam transmitir a mensagem do partido. É engraçado mas na sua essência não passa disso: uma piada. O BE é um partido que tão jovem não se consegue descartar desta forma de protesto pelo gozo. Não acharia grave se os dirigentes não enveredassem por aí, mas infelizmente enveredam um bocado. Pessoalmente, compreendo o formato da campanha para ser mais apelativo mas acho que descredibiliza o partido quando o pensamos inserido na sociedade conservadora e envelhecida que é Portugal. Tem a mesma incapacidade de comunicar com os adultos como os adolescentes a têm e até os jovens adultos que se sentem a viver num planeta alheado do dos avós. O partido político deve precaver-se mais desta aversão geracional provocada por uma mera fachada, afinal os pins do Che Guevara e as piadolas com a troika não são relevante, relevantes são os programas partidários e as propostas para alteração de leis apresentadas em parlamento. 

Mas bom, isto para apontar para um dos pins que mais me fizeram sentir o romantismo da nossa esquerda. O pin pró-palestina. É interessante como a dimensão dos conflitos Israelo-Palestinianos se propagou. Quase toda a gente tem noção de que aquilo tem para ali uns conflitos sanguinários. Numa pesquisa mais aprofundada vemos que há muitos outros sítios do mundo com conflitos armados graves dos quais nunca ouvimos falar e dos quais não queremos tomar partido. Neste sim e a principal razão será provavelmente por causa de termos um apoio americano metido ao barulho. Não tenho a pretensão de escrever sobre este tópico em particular porque há para isso analistas e muitos calhamaços de opiniões e perspetivas sobre o assunto. Quero apenas falar da minha experiência pessoal.
Estando envolvida em associativismo que lida diretamente com as políticas europeias no campo da juventude (uma pequena fração de apoios da CE para organização de encontros juvenis internacionais) recentemente tive a oportunidade de estar num seminário que lida com um novo frame destas políticas. O da integração dos chamados Meda countries – os países mediterrâneos. É só por si uma designação abrangente – desde a Tunísia a Israel, passando pela Turquia e Malta, muitos países estão abrangidos por este enquadramento que se quis lato para facilitar cooperação dentro destes projetos. Neste seminário conheci um rapaz muito simpático chamado Roi. Para quem acaba por cair neste clash político com as melhores intenções do mundo ligados à energia da juventude, era difícil ver no meu amigo mais do que uma pessoa animada e divertida, com uma tendência estranha para se rir de tudo à sua volta como que nervoso com as reações dos outros. No meio dos nossos mecanismos de defesa naturais no processo de socialização a maioria das pessoas esquece-se de enquadrar a identidade dos outros num ponto de vista mais do que psicológico, mas nacional. O Roi é israelita e vive em Tel-Aviv. No seminário estavam alguns europeus e muitos árabes.

O seminário decorreu em Portugal porque somos um país neutro, não temos uma variedade étnica enorme e a nossa comunidade de muçulmanos ou de judeus é reduzida. As minhas alunas indonésias não estavam a dizer com leveza que não tinham escolhido França para os seus estudos porque queriam usar o véu à vontade. Estavam a falar bem a sério. É o nosso temperamento brando e amigável. Todos são bem-vindos e não nos metemos com ninguém. Também há coisas boas por cá!
Isto se a neutralidade não estiver intimamente ligada à insignificância, mas seria outro tópico! Entretanto, nestes programas que têm prioridades delineadas e que por isso atraem pessoas com perfis específicos, tenho conhecido algo que em Portugal nunca vi e não sei se existe, jovens académicos especialistas no médio oriente. A minha experiência com os estudos asiáticos e sobretudo com a China já me deu uma perspetiva genérica de como os estudos internacionais se encontram subdesenvolvidos em Portugal. Os estudos chineses, por exemplo, em estado de maturidade avançada em muitos outros países europeus, assim como nos Estados Unidos, ainda se encontram na sua forma embrionário ligeiramente exotérica em Portugal. Felizmente a economia veio aí impor a sua importância no meio do academismo e a língua chinesa já se ensina e já se estuda com a seriedade de qualquer outra.

O estudo do árabe, no entanto, ainda não tem uma aplicação prática tão evidente neste mundo de capital e por isso é apenas semi-existente. Existe enquanto língua e pouco mais. Um amigo polaco dizia-me que eu era realmente extraordinária porque ele nunca tinha encontrado alguém do sul da europa que percebesse patavina de política internacional. Não soube se devia ficar contente com o elogio pessoal ou ofendida com o preconceito. Depois da Merkel nos ter chamado preguiçosos, oficializando assim uma distinção bairrista norte-sul, custa sempre ouvir os northerns dizerem seja o que for sobre nós. Mas será uma realidade? Claro que no leste e no norte se fala mais de política, se o trauma deles é tão recente, existe neste momento uma geração pouco mais velha do que eu encontrada a crescer entre transições de sistemas que se traduzem em transições de realidades. E quando pensamos na Polónia só temos pena. Mas o certo é que ainda não foram atingidos com esta onda anti-sul dos mercados e das economias internacionais, pelo contrário, estão a crescer e o facto de não terem aderido ao euro talvez seja relevante (!). “Falar de políticas é o dia-a-dia do norte” dizia ele enquanto me descrevia a forma como o avô era popular durante a guerra fria por ser o homem que tinha papel higiénico.
Agora o porquê deste nome do artigo. Depois deste seminário com os países mediterrâneos num meio a este semelhante conheci a Reem. Simpática e divertida, veio representar o Reino Unido mas na noite da comida intercultural presenteou-nos com comida da Palestina. A Reem é palestiniana a estudar em Oxford e foi o que me disse quando nos encontrámos pela primeira vez. Não me lembro como reagi em concreto mas sei que a assustei um bocado. Não tendo o que dizer e querendo dizer algo ao fim de dois dedos de conversa em privado disse-lhe ‘Eu apoio a vossa causa’. Ela olhou para mim com um ar cansado e agradeceu ou tentou agradecer. Não era desprezo mas sei que não gostou da minha associação imediata. 



Mas era demasiado pouco tempo e eu tenho demasiada curiosidade. Aprendo mais com as pessoas do que com os livros e a minha provocação acabou por ser consciente. No dia a seguir passou-me um livro para mãos – ainda tínhamos uns dias juntos – “I Shall Not Hate” de Izzeldin Abuelaish. “Agradeço o interesse. Muitas pessoas na Europa não têm sequer consciência e não temos advogados internacionais. Mas não acredito em divisões” depois de vários dias com as mesmas pessoas a falar de temas complexos e que apelam ao nosso lado mais emotivo, os laços estreitam-se. É um efeito big brother mas intelectual. Passei muitas horas a falar com a Reem e tudo o que ela me disse vai ao encontro daquilo que li no livro que me recomendou. Não há anti ou pró. Os ativistas que tenho conhecido têm-me familiarizado com o conceito da coexistência. Trabalhar para a paz nunca é tomar uma posição de ódio e é essa mensagem de Izzeldin. Tendo crescido num campo de refugiados na faixa de gaza, Izzeldin descreve neste livro como acreditou no poder da educação para melhorar a sua situação pessoal num primeiro nível e a situação do seu povo, num segundo (ou a tentativa de). O livro relata a sua experiência de vida e deixa-nos mergulhar no terror que é conviver com o terror. Coisas simples como passar as fronteiras ou obter tratamento médico adequado. A forma como teve que abandonar a casa por ordem israelita, a discriminação. Mas aquilo de que Izzeldin fala também é do conservadorismo do Islão, da desigualdade dos géneros, da forma como a mãe era ostracizada por não ser a primeira esposa do marido e como ele conviveu com isso. A bombista suicida que se armou para tentar explodir um hospital em Israel onde Izzeldin e médicos israelitas a tinham ajudado a tratar-se. A forma como o Hamas cria conflitos civis armados e instala o terror no território palestiniano. Ou seja, o que vemos aqui é uma perspetiva não sectária, não há partes definidas no branco e no preto de quem deve ganhar ou perder porque não há vitórias. Há uma situação complexa.



É inevitável que conhecendo o dia-a-dia de um campo de refugiados em gaza não nos indignemos contra a ocupação brutal de Israel, com a prepotência, com tudo aquilo que representa na luta das classes, o embargo, a humilhação, a forma como ocuparam um espaço e o tornaram fértil injetando-lhe dinheiro à custa do lobbismo americano enquanto alimentam descaradamente um estigma à volta daqueles que inevitavelmente, no meio da miséria, não lhes conseguiram evitar o ódio. Este médico, contudo, acredita na coexistência e ao longo do livro aponta constantemente para a forma como os árabes e os judeus têm muito mais em comum do que de diferente. É um tratado filosófico onde demonstra que, apesar de toda a tragédia que lhe rodeia a existência desde que nasceu e que culmina no bombardeamento do quarto das filhas, é parte da natureza humana ser-se genuinamente bom e positivo. É um relato de vida comovedor que para muitos pode não passar disso mas que para mim é a representação ideal daqueles que têm colaborado com todas as suas forças para formar uma ideologia de coexistência e não de ódio. Ser pró-palestina pode estar em voga mas o que nunca deveria estar em voga é a imaturidade e as ideias formadas a partir de meia dúzia de websites com teorias conspiratórias e explicações simplistas que tocam o antissemitismo. Isto porque o entendimento das religiões em si não devia sequer ser confundido com as etnias ou as várias formas de aplicação socio-política, ainda que religiões como o Islão possam estar orientadas para essa vertente de organização social – como o confucionismo o está, por exemplo. Mas são este tipo de coisas que me irritam nos militantes mais extremos – como o eram os Roptura/Fer com as suas ideias de se juntarem a milícias talibãs no Afeganistão. Contudo, não sou feminista para a seguir vir defender estados islâmicos conservadores. Não sou democrática para a seguir vir manifestar a minha simpatia por tiranias por oposição ao apoio que o capitalismo americano que lhe faz. É isso que às vezes me chateia nos pins pró-palestina, esta ideia por detrás de que as coisas podem ter explicações simples e uma fação clara. A minha ideia é a mesma que a deste senhor levemente desconhecido mas que tanto fez por esta causa: militem se querem militar, mas militem pela paz.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Entretenimento



“Perguntar-me-ão se defendo um mundo em que apenas existam televisões privadas. (…) Não é um cenário que me atraia. Porque sei que a indiferença em relação à forma como um povo se diverte é a marca de uma sociedade decadente. Para Gibbon, o declínio do Império Romano começou quando os imperadores cederam aos instintos da plebe, permitindo a organização, no Coliseu, de espetáculos nos quais os gladiadores lutavam até à morte. Criticar a RTP não é o mesmo que defender o Big Brother”. Maria Filomena Mónica, Impressao Digital: A RTP, Expresso

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Os homens que odeiam as mulheres / The Girl with the Dragon Tattoo

Tentar conjugar numa só obra um policial com jornalismo de denúncia mais questões de género mais reflexões sobre o estado de bem-estar social dos sistemas nórdicos pode parecer extremamente ambicioso e, ainda assim, soa incrivelmente bem! Soa bem sobretudo porque misturado a isto tudo temos a fabulosa paisagem de um país que é conhecido no estrangeiro por pouco mais de que mobiliário estético fácil de montar e barato (o que já é bastante, quando pensamos nisso!).
E isto é aquilo que faz com que esta saga seja também uma forma de valorização cultural nacional. Sim, porque a arte valoriza um país.

Vou tentar escrever este excerto como se estivesse a tomar uma cerveja e a gesticular numa manifestação de energia juvenil e espírito sonhador: temos uma história brutal sobre um assassinato e essa história decorre na Suécia e a Suécia é super awesome e tem paisagens fixes no Inverno e na Primavera e tem personagens super carismáticas e há grandes empresas que fazem grandes golpes financeiros e jornalistas de grande ética que procuram desenfreadamente a denúncia. Há hackers punks que punem os criminosos pelos seus próprios meios e há toda uma reflexão sobre política, sociedade, organização e caos e isto constitui um conjunto de elementos para algo de extraordinário. Imagine-se um português a escrever uma coisa assim!

Agora, ao escrever este artigo, de que é que posso falar? Dois filmes e um livro. Se toda a densidade da trama e os vários aspetos em foco não forem suficientes, temos ainda que lidar com dicotomias no que diz respeito à perspetiva de Stieg Larsson como basilar e às perspetivas do sueco Niels Arden Oplev e do americano David Fincher.
De facto, é difícil compreender o porquê dos remakes. Isso porque muitas vezes sentimos que o remake hollywoodesco está lá porque houve uma necessidade de adaptação cultural que o público americano tem dificuldade em encarar e isto, de um ponto de vista europeu, soa bastante estúpido. Durante algum tempo pensei que Fincher tinha optado pela adaptação a cinema da saga Millenium porque ela fazia parte de uma agenda mas depois de ver o filme condeno-me por ter alguma vez questionado a consciência da escolha do Fincher.
Na realidade, o tema atrai-o e a perspetiva que ele adota no filme, sob o ponto de vista da Lisbeth, é uma demonstração do envolvimento dele com a obra. Não só a quis apresentar como a quis interpretar. O filme sueco careceu não só de orçamento ou cultura cinematográfica mas também de visão e isso, na minha perspetiva, é o que não falta em Fincher.

A estrutura clássica do policial concentra e converte a maior parte das pessoas. Claro que o espírito detetive do público consegue mais concentração quando as pistas são dadas no formato de livro e daí elas existirem lá em mais abundância, contudo, penso que o Fincher conseguiu abreviar a estrutura de forma a ela ser percetível pelo público. Esta parte convence a maior parte da audiência. Depois há o resto que se apercebe que o filme não é sobre o caso de uma rapariga desaparecida, não de forma tão linear. O grande magnata empresarial conduz Mikael a um embuste quando não tem o que lhe tinha prometido ter para lhe dar e, para além do mais, atenta contra a sua liberdade e aos seus valores ligados à transparência: pede a Mikael que não revele o sadismo de Martin. Este é um aspecto que me parece relevante para o autor.

Vou voltar à questão do ponto de vista, adaptar aquele livro para cinema requeria o eleger das peças que queremos enfatizar e dos temas que queremos realmente explorar. Fincher envereda e diria até que se arrisca bastante quando elege o ponto de vista de Lisbeth. Isso porque opta por explorar em grande parte a problemática do género. Quem me conhece neste ponto deve achar que fico toda contente! O que não é bem verdade. Isto é, fico contente que ele tenha feito opções mas não vejo na saga Millenium a questão do género como a melhor. Claro que o filme é sobre homens que odeiam as mulheres e o desfecho do caso se relaciona com uma hierarquia de misóginos mas há na personagem de Lisbeth um ícone no qual não me revejo porque não a considero completamente feminista.

Aqui, as formas de atribuir poder à mulher são formas essencialmente… masculinas. Isto revela-se em alguma força física fora do comum que Lisbeth possui – a mota, a agilidade corporal, etc. Revela-se ainda mais na perspetiva de Fincher sobre o que é o poder feminino no ato sexual – a forma como Lisbeth utiliza o Mikael procurando apenas o seu próprio prazer ou até o facto de ela surgir inicialmente como lésbica.
Isto para explicar a minha não identificação total com o questionamento do género que foi um tom ligeiramente adotado por Fincher – daí o ênfase numa cena brutal de violação com o devido alívio posterior, o da vingança. A senhora ao meu lado só se ria quando a Lisbeth dizia que ela era louca e torturava o seu violador. Parece que o sadismo é coisa vulgar. Eu não consigo deixar de lado o tom perturbador desta escolha. Mas esse é o meu problema em aceitar uma mera destruição do sistema.

Que ela era louca! É aqui que Fincher ganha muitos pontos em relação ao seu colega sueco. Fincher criou diálogos, apanhou-lhes a essência e encurtou-os. Ainda assim é um filme longo mas imagine-se se quiséssemos transpor as palavras de Larsson como realmente eram. Teve uma resolução criativa para muitos dos problemas – quem é que não adorou o wink wink quando no fim nos trocam a Anita pela Harriet?
Fincher tentou surpreender os mais bem-entendidos no assunto porque ele sabe que os há e optou por esta forma de recriação.

Na minha perspetiva, o caso de investigação torna-se secundário e o facto de Mikael ser um jornalista com ética que procura simplesmente a transparência, sem simpatias ideológicas particulares, que a certo ponto cria empatia pelo Henrik Vanger é um dado bastante importante e mal explicado no filme. Mas, mais uma vez, isto dá-se porque o realizador teve que se debruçar mais sobre Lisbeth e menos sobre Mikael.

É interessante como a personagem de Mikael sempre foi aquela que me cativou mais ao longo da saga.
 A parte introdutória no livro em que se percebe que não é propriamente um homem seduzido pelos grandes patrões nem um sonhador idealista nem um intelectual misógino. É simplesmente ele, respondendo de forma cartesiana aos desafios, sendo metodológico dentro daquilo que considera capaz de ordenar. Evitando frustrações desnecessárias mas não indo contra os seus desejos – livro posteriores da saga exploram mais este aspaço. Mikael é um homem moderno face a problemas também eles de género e é este reverso da medalha que o torna uma personagem tão bem conseguida. Lamento que no filme ele não tenha oportunidade de se expor mais enquanto ser inteligente e interessante que é porque há demasiado a necessidade de ser atraente para Lisbeth para que esta atravesse um processo de maturação que culmina num desgosto.

Para sintetizar a minha apreciação, sou claramente fã da saga Millenium e queria um filme que fizesse jus ao livro, que conseguisse pôr em imagens grande parte dos momentos intensos do livro e o filme sueco foi uma grande desilusão mas, à parte de uma perspetiva inevitável do realizador, Fincher tem um trabalho conseguido. Já há algum tempo que a grande tela não trazia verdadeiros momentos de desconforto e neste filme eles surgem em todo o seu esplendor, num contexto controlado como devem surgir mas, acima de tudo, num contexto extremamente artístico.
Aquela reminiscência de Reservoir Dogs na cena de tortura do Martin é simplesmente deliciosa.
Conseguiu manter o hype elevadíssimo que o famoso trailer lhe criou, captou uma das várias mensagens do livro e transmitiu-a. O elenco está mais que conseguido. Siga para o próximo!

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O Pensamento

Fui parar à educação não formal de para-quedas. Aliás, fui parar à educação de para-quedas. Quando dei por mim, estava do outro lado da sala. Os papéis invertem-se e o mundo que pensamos conhecer, passa a ser algo de completamente novo. Não é que não seja uma realidade que deixo de encarar como natural, é quando automaticamente nos propomos a fazer aquilo que sempre achámos que deveria ser feito e é aí que surge verdadeiramente o desafio, confrontamo-nos com a condição de preceptor nos mais variados aspetos: éticos, formais, cívicos e, obviamente, pedagógicos. Os jovens professores tendem a seguir os modelos que tiveram. O que é natural. Toda a construção é um conjunto de influências e uma aula é uma construção. Mas não vou entrar por discussões pedagógicas, não é sequer a minha praia, há muito escrito sobre a teoria da pedagogia, andragogia, entre outros. Muitos métodos, muitas técnicas, aquilo que qualquer pessoa aborda quando tira um CAP – mas que infelizmente pouco ou nada tenta em termos de aplicação experimental do que aprende.



Mas muitas vezes senti que o facto de ter ido parar ao ensino sem o ter propriamente planeado foi uma espécie de provocação do destino que me quis pôr à prova, sendo eu uma aluna tão crítica e, por vezes, severa e intolerantemente crítica, foi como se me dissesse “então e agora, na hora da verdade, achas que vais realmente fazer melhor? Vais marcar a diferença?”. A aprendizagem do formador é também uma forma de aprendizagem. Aprender a ensinar passa por uma aprendizagem. Aprendi numa formação de educação não formal que Kolb fala do Experiential Learning. Da experiência concreta passa-se à observação e reflexão, formam-se conceitos abstratos e isso conduz naturalmente ao teste de situações novas. Ensinar passa basicamente por isto. Por uma aprendizagem constante daquilo que é o ensino daquilo que é o método. Acredito que a ética, as formalidades são algo que se vai estabelecendo, mas a forma de chegar aos alunos com eficiência é um processo que de tão complexo se torna um permanente study case. Uma das coisas mais relevantes que aprendi num treino sobre educação não formal foi que o Mentor/Professor/Perceptor/Trainee (como lhe chamam internacionalmente quando se referem a educação não formal) é alguém que terá que conduzir um manancial de condições psicológicas e conseguir lidar com elas. Isto é, o meu perfil – mais concreto, experimental ou então não, mais abstrato e conceptual – terá que ser equilibrado com os inúmeros universos psicológicos que terei à minha frente.



Mas o meu objetivo com este texto é questionar, o que é a formação? O que é a qualificação, o que é conhecimento? Não foi em vão que comecei o texto com a expressão ‘educação não formal’. Em termos teóricos e políticos a educação não-formal é algo que é implementado através de políticas de apoio do estado ou de estados membros, como o caso de projetos apoiados pela União Europeia em secções que preveem um acesso livre ao conhecimento e à experiência multicultural de forma a promover o humanismo e a aproximação das pessoas. Tudo isto munindo as pessoas de saberes e conhecimentos não certificados. É educação não formal. Posso ter aprendido bastante sobre uma determinada área – normalmente humanística, política ou de outro caráter multicultural e social – mas ninguém me dá um diploma que seja academicamente válido. É um pequeno extra num currículo mas não é formalizado. Numa altura em que o debate sobre a Europa está na ordem do dia e em que mais do que nunca Portugal parece vitimizado pela sua pertença a este sistema que está neste momento a colapsar e a desviar-se completamente dos seus objetivos fundadores, estes apoios de privilégio ao multiculturismo, sensação de pertença a um universo global estão à beira da extinção. E porquê? Qual é o valor das ideias no mundo atual? Aceitamos que não passamos de produtores de bens e serviços. “Não são coisas práticas” diz alguém numa conversa de café e dizem muitos políticos à frente destes estados membros. Seria interessante que se conhecesse que foram estes programas em parcerias com os países árabes mediterrâneos com os quais temos parcerias que despoletaram, por exemplo, grande parte da consciência política que levou à primavera árabe na Tunísia. Se isto não é mudar o mundo pelo pensamento, então é o quê?



Acaba por haver esta necessidade de sistematização permanente, institucionalização permanente. Esta época acabou! Estamos na época do acesso facilitado ao conhecimento. Educação não formal? Estou a utilizar uma neste momento. Mais acessível ainda porque é de todo gratuito, é o acesso a uma biblioteca. A educação não formal passa por uma iniciativa coletiva mas também individual. A informação está aí, mais disponível do que nunca. Não deixamos de ser multados por um polícia por alegarmos não conhecer a lei e não podemos no mundo ocidental deixar de ser culpados pela nossa própria ignorância. Se não sabemos foi porque não quisemos saber. A maioria dos problemas sociais na história do mundo, adveio da ignorância.
Em Portugal, há muito esta tendência de sobrevalorizar graus, sobrevalorizar títulos. É como que uma forma de arrumar as coisas em caixas de uma forma simples, que todos possam perceber. Acredito na especialização, na qualificação científica e académica nos moldes clássicos mas acredito, essencialmente, numa incitação à curiosidade, incitação ao espírito crítico, à criatividade e à lógica racional no seu sentido mais filosófico. Sim, no sentido filosófico! Tenho ouvido tantas conversas de gabinete sobre a “pouca importância pragmática de certas disciplinas”. Claro que não vamos desviar cursos a cem porcento os objetivos tecnológicos de uma formação mas o valor das ideias é algo que não advém de nenhuma massificação do ensino. Uma professora numas jornadas de línguas aplicadas em que participei dizia “Ao fim dos vários doutoramentos, percebi que a minha capacidade profissional estava principalmente relacionada com o meu fascínio pelo ballet desde os 6 anos”. O pensamento, a reflexão conduzem-nos para a construção. Somos mais competentes quanto mais racionais, quanto mais conscientes somos da realidade que vivemos, quanto mais enquadramento teórico lhe damos. Não é por acaso que esta Professora que ouvi e tanto admirei numa palestra e com quem não tinha qualquer contacto, tal era o distanciamento que o respeito por ela me provocava, se veio a revelar minha colega de trabalho, meses mais tarde, pelas circunstâncias. Pelas circunstâncias mas há uma consequência natural da incitação ao pensamento, aqui ilustrada desta forma.



Depois há aquelas pessoas que acham que uma pessoa só se preocupa com uma condição social quando é miserável, são os defensores da inveja. Meus caros, não, não é por ter preocupações sociais que isso significa que eu pessoalmente vivo em condições menos privilegiadas dos que as vossas. Se repararem ao longo da história da humanidade e do estudo da sociologia, as principais revoluções sociais advieram dos filhos dos burgueses. Aqueles que tinham acesso ao conhecimento e que não suportavam as ideologias dos pais. Na minha vida pessoal posso estar feliz, na minha vida enquanto cidadã tenho um dever de velar pelo estado do mundo em geral e do meu espaço em particular. É um dever cívico, são os valores da democracia, são os valores do estado de lei que fomos conquistando ao longo de milénios. Isto não é pessimismo.
Depois são estas coisas que me levam a odiar discursos motivacionais baseados em formas ilusórias de perspetivar a realidade e que desprezam visceralmente o meio que os rodeia e chamam isso “ótica otimista” e que depois se revelam esquemas maquiavélicos que se aproveitam da ingenuidade dos arrivistas (coisas como a ACN do Donald Trump, entre outras coisas desse tipo). Não há otimismo nem pessimismo. Há uma avaliação analítica das circunstâncias e uma visão concreta de como podemos contribuir.
Não é preciso ter um grau académico ligado à política, nem às relações internacionais, nem à história nem ao cinema e, no entanto, posso elaborar o meu pensamento, posso expô-lo perante os factos que possuo, as deduções que faço, as ligações que construo, posso dissecar, membro a membro, todos os alicerces que compõe a minha forma de perspetivar o mundo. E isso é algo que nem todos os professores vão transmitir mas é o que vai estruturar a nossa realidade. Posto isto, a educação tem o papel que tem, social, estrutural mas o valor do pensamento e das ideias vale por si só, não requer um prestígio devidamente institucionalizado por um título. E um título sem conteúdos, é precisamente isso, um título, e qualquer cidadão tem todo o direito de pôr em causa o que esse título nos tenta transmitir como verdade única.