quarta-feira, 4 de abril de 2012

A liderança, back to Lord of the Flies

Já tentaram dominar um grupo de pessoas? Um grupo de amigos, um grupo de colegas, um grupo de trabalho. Felizmente nem todos vivemos segundo os moldes culturais americanos e não crescemos com noções claras sobre popularidade mas hoje em dia fala-se muito em empreendedorismo e liderança.


 Eu questiono-me, o que é realmente vital para que a liderança ocorra? Tive recentemente o desafio de criar um método de educação não formal que se enquadrasse no plano da democracia/cidadania. No meu grupo de trabalho alguém sugeriu ter-se como base a história de Lord of the Flies. Um grupo de pessoas encontra-se isolado numa ilha depois de um acidente de avião e diferentes pequenos grupos seguem diferentes lideranças. Para isto dávamos-lhes instruções. A ideia era termos por detrás vários backgrounds ideológicos ou diferentes estruturas de organização social mas dissimulados por uma breve descrição. Para que o role play tivesse mais piada, cada grupo teria diferentes recursos interdependentes, o que faria com que tivessem que chegar a um acordo em relação à liderança. Enfim, acabou por se testar o método que se revelou bastante pedagógico para os envolvidos. Já tínhamos previsto no grupo de trabalho possíveis associações – será que os teocráticos se juntam à democracia, será que os ecologistas cedem à ditadura, no grupo experimental a maioria dos participantes estava com dificuldade em compreender a diferença do grupo no qual nos inspiramos para a democracia e do grupo no qual nos inspirámos para ditadura (de contornos comunistas). Curioso.



Na realidade, no livro que nos deu este fundo teórico apercebemo-nos que quando confrontados com a estaca zero civilizacional, um grupo com frágeis reflexos sociais (como o são as crianças) facilmente cede à selvajaria. Claro que o objetivo deste método em particular era o de instruir para a cidadania e transmitir valores democráticos, preferencialmente aqueles que temos como basilares no velho continente.

Mas do social salto para o pessoal e é tão fácil apercebermo-nos que esse instinto selvagem de cedência ao simples e ao imediato é absolutamente presente. É interessante observar alguém que tenha um instinto natural para a liderança ou, pelo menos, para exercer influência sobre os outros. A forma como o populismo está presente, as ideias fortes deixam de ser assim tão fortes, o controlo das emoções, a compreensão empática da emoção dos outros e a racionalização da resposta esperada. Nada disto constitui o arsenal de conhecimento intelectual que nos fazem acreditar ser o conteúdo essencial para a liderança. Tudo isto requer muita possibilidade de prática mas no meu íntimo tenho a certeza de que há situações de completa impossibilidade. A capacidade de manipular é demasiado instintiva e dificilmente racionalizável. É por isso que esta obra é tão claramente fascinante.
Uma vez que o Piggy representa o espírito intelectual e lúcido dos bastiões da nossa construção social, o verdadeiro líder Ralph tem que ceder muito mais ao espírito massificado e funcionar com base numa certa condescendência. De outra forma, o líder intelectual é automaticamente suprimido pelo líder emocional, aquele que dirige as emoções e que pode (e que o faz tendencialmente) conduzir o grupo para a dissonância – como se diz em termos de inteligência emocional – apatia, paralisação e união pelo ódio. É o que faz o Jack. Bom, depois de ler uma obra destas e com algum espírito crítico e reflexivo facilmente chegamos a estas conclusões e por isso estes cursos intensivos em voga de “coaching” acabem por ser, honestamente, inúteis. Mas como quero manter um bom espírito de liderança, não vou fazer propaganda negativa que possa prejudicar os meus amigos psicólogos. 



Agora a minha reflexão em juntar o plano do psicológico com o da ascensão social ao qual a liderança pode levar, seja em termos políticos ou apenas dentro da nossa empresa ou instituição é o de que, o que é necessário não é necessariamente o que é ensinado.
É uma observação óbvia de se fazer mas menos fácil de expor analiticamente ou que requer pelo menos alguma disponibilidade mental para pensar sobre o que nos rodeia, o que acaba por ser algo que faço instintivamente e não porque tenha alguma meta delineada que me leve a fazê-lo. Isto reflete uma das características de Jack porque o verdadeiro líder é aquele que embarca o grupo naquilo que ele faz por instinto e puro prazer – o dele era caçar, matar, o bloodlust de que nos fala o livro. Mas podia ser outra coisa qualquer.
Na realidade, ter que obedecer a imposições e regras não é propriamente a coisa mais divertida de sempre e isso sente-se. É por isso que, à parte de todas as análises deste livro que é estudado em todas as escolas dos países anglo-saxónicos, a interpretação não é assim tão linear em reconhecer o bom e o mau. Isto porque o bom é alguém que não deixa de estar inserido num sistema e num formato.

Será que há algo de Jack em qualquer pessoa com tendência natural para a liderança? A ideia de símbolo, a noção de pertença/outcast.
É por isso que quando Jack começa a tentar camuflar-se na natureza com as suas pinturas faciais adquire um simbolismo de estilo a que ninguém consegue escapar o fascínio, a noção de pertença através de símbolos que nos fazem sentir maior do que nós, numa profunda ilusão de poder (bem representado mesmo no filme dos 90, o menos apreciado dos dois). Se virmos de um ponto de vista externo, quantos povos se definem por símbolos religiosos, quantas tribos recorrem à exuberância facial de guerra que os camufla com a natureza mas que os define de forma exclusiva para os unir como um grupo.
Quando estão num grupo de amigos e alguém tem um claro sentido de liderança que toca a ambição e a obsessão e o prazer pelo domínio, nunca repararam no tipo de sinais mais ou menos evidentes que surgem como que símbolos que nos identificam como pertencentes ou não? Coisas simples e simbólicas podem começar a minar a criação de subgrupos. Será chocante vermos em nós ou nos que nos rodeiam o poder manipulador que Jack representa?



Talvez esta linha de pensamento que se debruça sobre o descrédito pela ordem pré-definida em prol de uma lógica de poder e de submissão ao poder, no conduzisse a ideias como as da anarquia ou do niilismo no sentido filosófico para nos opormos a isto. Se não há regras e nada faz sentido então não há qualquer motivo para se acreditar na existência. Contudo, há na personagem de Simon uma esperança no valor intrínseco do Homem, a crença na possibilidade de se poder ser genuinamente bom, ou seja, aquilo que entendemos em termos de rótulo por humanismo. Simon é o primeiro a questionar o elemento de medo criado pelo sistema opressor de Jack, a existência de um monstro – o tal elemento externo que reforça o interno. Simon é aquele que não acredita na besta, é absolutamente destemido porque não acredita que tenha muito mais a perder, não acreditar em nada pode também traduzir-se por uma coragem movedora. No livro, este ser em comunhão com a sua essência é destruído pela brutalidade do grupo alienado. Uma prova de que sem a liderança correta, tudo pode ficar negro.



Há quem tenha recentemente comentado a semelhança deste livro com o recente The Hunger Games – que inevitavelmente vem associado ao Battle Royale. Mas não vejo o porquê da relação. Provavelmente só fazem este paralelismo para abordar o tópico das definições das idades da audiência em que os argumentos passam por: “Já que deixamos as nossas crianças analisarem na escola livros como Lord of the Flies, porque não deixá-las ver o The Hunger Games?” Na realidade, nem HG nem BR têm muito em comum com LOTF. Os primeiros têm em comum a crítica mediática, o conflito geracional, a ulta exposição e o sadismo de uma sociedade orientada para uma glamourização da violência. LOTF é uma reflexão pura sobre as dinâmicas de grupo e a fragilidade dos nossos sistemas democráticos, consensualmente os melhores ainda que, em perspetiva, ainda não perfeitos.



A reflexão real é em que medida esta luta pela liderança não é apenas mais uma forma de integrar um sistema perante o qual espíritos críticos vêem necessidade de reforma. Alimentar a noção de competitividade como solução, é de facto um caminho viável? Até que ponto precisamos da condescendia e, acima de tudo, até que ponto precisamos de ordem e até onde pode ir o nosso caos se ele representar uma superioridade intelectual definida – dialética de Marx, (não marxismo) ? Uma coisa é certa, sinto-me inserida numa linha de pensamento que se expressa por um lado pelo idealismo e por outro pelo pragmatismo decorrente da condição humana efémera, sem que dela derive um incontornável egoísmo já que há um sentido de comunidade que nos é intrinsecamente necessário. E quanto mais tentamos anular o nosso ego, é quando ele mais parece brilhar. É por isso que de todos os elementos representados no livro, o Simon é provavelmente aquele que me descreveria embora em quase tudo o que faço as reações convergem para o líder socialmente equilibrado que é Ralph. É o meu nível de fachada, é o meu nível de fazer o menos pior, num mundo onde o idealismo acaba por ser fatalmente confrontado com a morte da inocência.

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