O que representa a poesia de um país?
Em 2015 não há muitos motivos para se ter orgulho em ser
português. Essencialmente por questões políticas e acessoriamente por questões
que se relacionam com a economia local mas também global.
Se a expressão artística em geral consegue representar uma
identidade individual ou coletiva, a poesia, pelo uso exclusivo da linguagem
consegue minudenciar essa identidade.
Sempre me identifiquei com o Álvaro de
Campos que era estrangeiro em toda a parte e com o Pessoa que declarou que a
sua pátria era a língua portuguesa. Dois conceitos pessoanos com os quais desenvolvi
a minha identidade desde a pré-adolescência.
Pessoa falece em 1935 mas é a partir dos anos oitenta que
historicamente se começa inscrever na nossa memória coletiva, símbolo da
cultura portuguesa contemporânea, lisboeta em particular devido ao esforço que
foi feito para que a divulgação da riqueza literária que ele deixou pudesse
atravessar fronteiras. Consecutivamente conheço estrangeiros que se apaixonaram
por Portugal porque começaram por conhecer Pessoa. Neste Março que celebra 100
anos desde a primeira edição da Revista Orpheu é também um mês em que o país
perde mas, sobretudo, a língua portuguesa perde um símbolo maior da sua
vitalidade com o falecimento de Herberto Helder.
Em Photomaton & Vox, Herberto Helder define em 1979 o que
significa pertencer a uma geração de poetas em Portugal “Eramos uma nova
imitação de Cristo na Luciferania versão de alguns radicais antigos ou
modernos, para quem a poesia foi uma ação terrorista, uma técnica de operar
pelo medo e o sangue”. Até porque a poesia é “aquele equilíbrio no arame que
mata o apetite de vertigem e nebulosa delinquência de uma emotividade suburbana”.
Herberto Helder, surrealista, simbolista ou híbrido: um
poeta que explora as figurações do corpo (a poesia carnal ou encarnada), da
relação com o tempo e com o espaço, da reivindicação da presença do leitor, da
relação vida e arte, do discurso do absurdo, da dessincronização dos sentidos e
da criação de realidades na realidade. Do prosaico ao carnal, do erudito ao
existencial. Um poeta que pôs muita gente ler poesia e outra tanta a escrevê-la.
Um homem de esquerda, contra as unanimidades e pensamentos empacotados.
A resposta à pergunta inicial do post encontra-se também
dada por Herberto Helder na continuação da abertura desta obra, o poeta como
revelação, sendo que “a última revelação é esta de sermos os produtores
inexoráveis e os inevitáveis produtos de uma ironia cuja única dignidade é descender
do tormento, um tormento sempre equivocado na sua manifestação sensível.” “Escrever
é um jogo (…) representa-se a cena multiplicada de uma carnificina
metafisicamente irrisória”.
Sabemos que Herberto Helder não quer ser o próximo Fernando
Pessoa. Não quer estátuas, não quer ruas, não quer pertencer a protocolos
literários, como afirmou em modo de pedido o seu mais mediático filho, o
comentador político e jornalista Daniel Oliveira.
De facto, se se refugiou de qualquer meio mediático nos
últimos anos de existência não podemos depois da sua morte desejar-lhe algo
contra o qual lutou em vida.
“Se quisesse,
apresentava-me como uma vítima da escrita, da inocência, da neurose e suas
instâncias psiquiátricas e psicanalíticas”.
Se em 2015 temos poucas razões para nos orgulharmos da nossa identidade, Herberto Helder é uma delas. Apelo ao encontro de uma identidade que não se deixe
delinear apenas por fronteiras ou origens mas que se exprima através do nosso
maior património: o património linguístico. Cabe-nos divulgar Herberto Helder
como ícone de um valor literário ímpar globalmente. A contemporaneidade exige
reciclar os nossos ídolos literários. Que estes se mantenham como parte
essencial de uma identidade coletiva, sempre.