A paz e a
violência de acordo com a tradição moderna
A
solidez do sistema internacional depende em larga medida da eventualidade de um
confronto ou da possibilidade da manutenção da paz. Para Donald Kagan, de
acordo com uma análise histórica comparatista que levou a cabo, a guerra é o
resultado de uma competição pelo poder. Contudo, o conflito não se pode reduzir
exclusivamente à competição, uma vez que ele ocorre efetivamente quando uma
parte pretende alcançar os seus objetivos prejudicando a outra.
A
noção de conflito foi muitas vezes enunciada numa narrativa que tende a cair
numa abordagem realista e Hobbesiana que relata um ciclo conflituoso e,
consequentemente, uma narrativa do conflito. Na perspectiva de Maria Raquel
Freire e Paula Duarte Lopes “This
narrative confines and directs strategies, instruments and actors to conflict. For peace
studies, violence is the problem, but if the framework of action is bounded and
rooted in conflict, the outcomes can hardly be framed outside a
conflict-oriented narrative”. [i]
O
discurso do conflito tende, portanto, a substituir o discurso da violência.
Isto é, a violência deve ser encarada como um continuum. Esse continuum de pazes e violências possui um carater facultativo, depende
de uma escolha de implementação de uma ou outra cultura, sendo a cultura da paz
o objetivo primordial como “a virtue, a state of mind, a disposition for
benevolence, confidence, justice” nas palavras de Baruch Spinoza (1670).
Neste
ensaio pretendo analisar as conceções de paz e violência à luz das teorias
dominantes das relações internacionais, as quais intitulei de “tradição
moderna”.
Se,
por um lado, o tratado de Vestefália conferiu aos estados um papel central e
soberano na compreensão das relações internacionais, por outro, os estudos da
paz colocam em causa esse consenso da elaboração do terreno pacífico como
aquele que apenas é intrínseco ao sistema estatal.
Refiro-me
a consenso porque essa definição é transversal às duas principais correntes da
tradição moderna das Relações Internacionais: o realismo e o liberalismo. Estas
duas escolas de pensamento continuam a oferecer perspetivas acerca do
comportamento dos estados e respetivas consequências na manutenção da paz.
Por
um lado, os liberais advogam a liberdade individual, acreditando na conceção
rousseana
de que os homens são bons por natureza. O foco principal reside assim no
individualismo, nos direitos humanos, na universilidade, no desapego à
autoridade, no tratamento igualitário perante a lei e na liberdade pela ação
social. Mantém um elevado nível de otimismo e confiança. Intimamente
relacionada com a teoria liberal encontra-se a teoria da paz democrática e a
crença nas democracias representativas. Várias teorias liberais apontam ainda
para a relação da paz com o crescimento económico e defendem vincadamente a liberdade para a ação económica
independente de qualquer interferência do estado (Fukuyama,
1992, p.44). A paz é nesta perspetiva descrita por Oliver P. Richmond como refletindo
o pensamento Augustiano da “tranquilidade da ordem”, realçando a contradição
Hobbesiana em conter o estado natutal do homem e realçando o projeto enunciado
por Quincy Wright, para quem a paz é representada por um comunidade onde a lei
e a ordem prevalecem.[ii] Para além do mais, a paz
liberal reclama para si o estatuto de ideal platónico que dá a forma a um
imperativo kantiano.
Por outro lado, a proposta
realista assume uma visão mais pessimista em relação à natureza humana. Ainda Oliver
P. Richmond na sua “epistemologia negativa” refere-se à corrente realista concebendo
a paz como episódica, momentânea. Realça ainda que a paz só é paz para o
vencedor e que esta só é alcançável pela hegemonia e garantida pela força. Paz
é neste sentido uma expressão de poder. É muitas vezes referida como uma paz
negativa, uma vez que a sua definição se prende com o silêncio das armas, isto
é, a ausência de conflito aberto. Grandes vultos do realismo dos anos 40 e 50
do século XX chegam mesmo a estar filiados a uma visão marxista da sociedade.
O continuum de pazes e
violências deve assim ser gerido de forma a evitar o confronto, ou seja, a
guerra. Um dos grandes desafios dos teóricos, realistas, liberais ou neo-neo é
o de tentar decifrar no tecido heterogéneo da história padrões explicativos das
causas de conduzem à guerra.
Apesar
de todos os debates e divergências teóricas em torno destas correntes, elas
acabam por convergir quanto à assunção estato-cêntrica das relações
internacionais. Todas encaram os estados como unidades pacíficas e o campo
externo, o território internacional como o domínio da guerra, aquele onde não
existem contratos sociais e onde o caos e a anarquia predominam. Esta é a raiz
comum destes dois pensamentos, aquela em que a política como paz se opõe às
relações internacionais como guerra.
Os
estudos da paz, no entanto, demarcam-se desta tradição moderna, recusando assim
a aceção de que a condição humana nos entrega a um estado de conflito
permanente. Este tipo de pensamento comum a Hobbes, Rosseau, Voltaire e Kant remete-nos
para o princípio de que se todos aspiramos ao mesmo, então a possibilidade de
conflito é infinita.
Quando Johan Galtung menciona o
triângulo da violência e da paz[iii], encontramo-nos
perante uma abordagem que é transnacional, isto é, os estudos da paz
distinguem-se dos estudos da segurança e estratégia por estes terem a premissa
de que a guerra e o conflito são uma constante a ser gerida e mitigada.
Na obra de Kenneth N. Waltz, Man, the State and War, o autor refere três níveis de análise
recorrentes no estudo das causas da guerra. A primeira prende-se com aqueles
que procuram a explicação da guerra na natureza humana. Na segunda procura-se
uma explicação que atravesse a estrutura interna do estado sendo possível
incluir neste grupo os liberais e os marxistas-leninistas. Os primeiros por
acreditarem, como já mencionado, que a democracia conduz à paz e os segundos
por acreditarem que é a ideologia socialista que conduz à paz enquanto o
capitalismo fomenta a guerra. O terceiro nível de análise é aquele muitas vezes
incorporado no neo-realismo, já supramencionado que encara o sistema
internacional como anárquico, carente de organização que torna a expectativa de
guerra uma inevitabilidade. As teorias de Waltz baseiam-se na terceira imagem e
também elas transcendem a organização essencialmente estato-cêntrica do
panorama internacional. Isto porque, por exemplo, o comportamento criminal de
indivíduos isolados pode ser considerado uma forma de conflito violento. As
ideias de Waltz vão neste sentido ao encontro da noção de que a paz é um processo
holístico passível de existir quando condições básicas se encontram
asseguradas. Para além disso segue as mesmas diretrizes do ensaio de Freire, M. R. And Lopes, P. D., pois encara o
processo da promoção da paz, construção da paz e manutenção da paz como uma
rede interdependente mas não como uma premissa sequêncial que segue uma única
direção. O continuum de pazes e violências pode estar apresente até em
contextos formais de paz. O conflito não tem porque se transformar em conduta
violenta e pode ser prosseguido por meios políticos, económicos, psicológicos e
sociais menos evidentes.
Tendo já enquadrado a perceção da paz nas
diferentes abordagens teóricas, debruçar-me-ei sobre uma análise fugaz a alguma
formas associativas da violência. Como já mencionado, a violência deve
substituir a noção de conflitualidade típico à narrativa do conflito. Podemos,
contudo, falar de uma abordagem cultural à violência. Quando Huntington escreve
“O Choque de Civilizações” promove uma ideia que se baseia no confronto inevitável
do Homem devido ao seu crescimento civilizacional isolado, estando esta matriz civilizacional
relacionada segundo os teóricos do choque
essencialmente com os valores religiosos dos vários povos. Vários críticos da
teoria do choque de civilizações realçaram o carater anti-humanista da teoria. A
história legitima a vontade genuína da aproximação das civilizações mais do que
do seu choque. Desde Marco Polo e as suas longas viagens pela compreensão
humana até aos missionários italianos e portugueses que tentaram encontrar
pontes de ligação entre o cristianismo e o budismo no sul da China, as
civilizações tendem para um entendimento mais do que para o confronto, ainda que possamos considerar que a
insatisfação generalizada possa conduzir a uma elevada suscetibilidade à
propaganda e isso provoque confrontos como os ocorridos entre muçulmanos e
hindus no anos 40 do século XX e ou Sérvios e Albaneses na antiga Jugoslávia.
Amartya Sen em “Violence, identity and
poverty” trata desta abordagem teórica à violência pelo choque de civilizações
mas relaciona outro fator de relevo, o económico. De facto, negar a associação
da violência a contextos de exclusão social e económica torna-se uma tarefa
difícil. O deterioramento do estado social encontra-se muitas vezes relacionado
com o aumento dos níveis da criminalidade. Quando no início de Março do ano
passado a primavera árabe ou a revolução
do jasmim, como lhe chamaram os tunísios se deu, podemos afirmar que não
foi exclusivamente devido a um choque civilizacional de cariz religioso mas
antes uma sucessão de protestos relacionados com as condições de vida das
populações de vários estados árabes. O fenómeno das favelas ou dos
estados-satélite no Brasil onde o crime organizado se instalou de uma forma
quase impenetrável, torna possível associar os estados de violência aos
elevados níveis de pobreza e de profundo contraste social presentes nestes
espaços. Claro que estes motivos não se podem valer por si só e muitas
implicações sociologicas, políticas, factores sociais e culturais ajudam a
agravar cada situação, salvaguardando toda a sua especificidade – isto porque o
discurso da relação pobreza com violência pode conduzir a um uso manipulatório
da retórica política, tentando apelar ao medo da violência dela proveniente e
não aos valores éticos que em si encerram estas situações. Sen dá-nos o exemplo
de Kolkata onde as elevadas taxas de pobreza não conduzem necessariamente a
estados agravados de violência.
A paz e a violência adquirem
diferentes formas de acordo com os diversos enquadramentos teóricos e os
diversos factores de análise. Os estudos da paz devem por isso refletir sobre o
seu propósito e tentar transpôr a tradição, numa tentativa de enquadramento da
definição da paz numa altenartiva pós-moderna, transversal e transnacional.
[i] Freire,
M. R. And Lopes, P. D. (2009) “Rethinking Peace and Violence: New Dimensions an
New Strategies”, in P. D. Lopes and
S. Ryan (eds.) Rethinking Peace and
Security: New Dimension, Strategies and Actors. Bilbao: University of
Deusto, 13-29
Fukuyama.
F. (1992) The end of
history and the last man. New York: Macmillan, Inc.
[ii] Richmond, O. 2006, “The problem of
peace: understanding the “liberal peace””, Conflict, Security &
Development, 6(3), October 2006.
[iii]
Johann Galtung define a concomitância de uma
violência cultural (produção de ideias justificativas das demais violências)
com a paz cultural (cooperação e comiseração com todas as formas de vida); da
violência direta (eliminação física do outro) com a paz direta (formas de
controlo não-violentas, com sanções positivas); e da violência estrutural
mecanismos sistémicos de injustiça e morte) com a paz estrutural (satisfação
das necessidades básicas e distribuição de bens e serviços);
Referências
Galtung, J. (1969),
“Violence, peace and peace research”, Journal
of Peace Research, 6 (3), 167-191
Hobbes,
T. (1985). Leviathan.
London: Penguin Classics
Huntington,
Samuel P. O
Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial, Objetiva, 1996
JAMES,
E./PLATZGRAFF, Robert, As Relações
Internacionais: as teorias em confronto, Lisboa, Gradiva, 2003.
Kelsen, H. (1944), Peace
through law, Chapel Hill: University of North Carolina Press (trad.
castelhana pubicada em Madrid: Editorial Trotta, 2003)
Kagan, Donald, On
the Origins of War and the Preservation of Peace, Nova Iorque, Doubleday,
1995, pp. 1-11 e 569
Richmond, O. (2008), “Marxist agendas for peace: towards peace as
social justice and emancipation”, in O. Richmond, Peace in International
Relations. Londres: Routledge, pp. 58-72
Sen, A.
(2008) “Violence, identity and poverty”, Journal of Peace Research, 45
(1), 5-15.
Spinoza, Baruch, Theological Political Treatise, 1670
Waltz, Kenneth N. Man, the State and the War: A Theoretical Analysis,
Nova Iorque, Columbia University Press, 1959, caps. 2 e 4 Waltz, Kenneth (1967), “The politics of peace”, International Studies Quarterly,
11 (3), pp. 199-211
Wiberg, H. (2005), “Investigação
para a paz: passado, presente e futuro”, Revista Crítica de Ciências Sociais,
71, 21-42.