A partir do título do novo livro de Sara F. Costa, «O movimento impróprio do mundo», entramos num espaço que gira em torno de dois conceitos: movimentoassociado a deslocação, a viagem, e mundo relativo ao espaço em que esse movimento se dá. No entanto, se por mundo entendermos a Terra, o planeta, o movimento que logo lhe associamos é o de rotação, com a sua dupla regularidade ligada ao dia, que é a rotação do planeta sobre si, e o ano, que é a rotação da Terra à volta do Sol. Estaríamos assim perante um tópico da poesia que fala dessa dualidade nocturna e diurna, e da mudança das estações ao longo do ano. No entanto, o que poderia parecer uma associação simples e confortável para o leitor, que remeteria para o mundo clássico esta poesia, é contraditado, ou melhor, perturbado pelo adjectivo impróprio. Sara F. Costa vai, assim, rejeitar esse espaço da tradição que, pela antítese diurno-nocturno, remete para o Romantismo, e pela sazonalidade que deu origem ao mito do eterno retorno, para o Classicismo, e avança por um outro terreno em que o movimento, ou melhor, a viagem, não coincide com as referências habituais da linguagem poética.
Há muitas viagens neste livro. Podíamos falar de viagens como a que se faz ao passar/esta ponte triste/que vai dar a Setúbal (p. 7), a que leva até às placas que indicam que Figueira da Foz é mais ou menos na/mesma direcção (p. 11), a que segue o desejo taxativo do «Vou-me embora» que começa na Universidade do Minho e termina em Beijing (p. 13), a da «Modern girl» que apesar de nunca ter ido a Nova Iorque se mudou para Coimbra (p. 78), a combinação com o estudante de relações internacionais para um encontro algures entre/o Império Otomano e o Bizantino,/por volta de Agosto (p. 86), ou o poema «Shanghai» (p. 65), entre outras, ou seja, referências que se podem considerar concretas, a que se podem somar outras mais literárias quando, em Peniche, diz que podia estar em Paris (p. 35), qunado pretende levar o Tejo para a China(p. 85), ou ainda quando encontra o Husserl a jantar com o Alphonse de Lamartine (p. 73).
Este é o mundo que se encontra no título e que tanto pode fazer parte de uma realidade concreta da globalização contemporânea como, sobretudo, surgir ao longo do livro para apelar a uma pulsão de liberdade que, hoje, perdeu o sentido que teve no tempo dessa rua onde Ramos Rosa adiou o amor, e se tornou um instante de risco em que não se ama a liberdade,/bebe-se liberdade/misturada com espumante e terror («Liberdade», p. 16). É uma liberdade que absorve tanto a novilíngua dos feed, startup, cliffhanger,hardclub, networking, o uso do inglês em títulos ou citações, a presença de nomes que funcionam como fundo entre o cultural e o que poderíamos chamar intertextual, de Herberto Helder a Dante ou Rimbaud, de Nietzsche a Sartre, Kafka ou Patti Smith; e uma errância por lugares que, no entanto, são o lugar único em que a poeta se define como uma casa corpo, não passo de.
Também o amor comunga dessa liberdade em forma de errância, como se o corpo fosse apenas um lugar de passagem. É quando diz que à noite, quando o homem, regressa/ não é sói a ele que me dou mas aos quatro ou cinco a quem já/me dei antes/porque no meu útero rebentam todos os mares (p. 28) que a entidade mulher se assume como esse mundo líquido em que o canto das ondas feridas/ atravessa a existência (p. 29) até esse momento do poema «Quando eu fui morrer para o mar» (p. 72) em que a morte, ligada à água bachelardiana, se associa ao renascimento ligado ao útero: ressuscitei na mesma madrugada em que fui morrer para o mar (p. 73). Uma poética iniciática, mas uma iniciação que se verifica no espaço fechado de «O sepulcro-espelho» (p. 47) em que o Eu se contempla num processo que é descrito como o movimento impróprio do mundo, contrário à luz e à expansão, e entregue à harmonia demoníaca do teu desejo no processo de morte ritual em que o olhar narcísico e auto-destrutivo de onde nasce o prazer fundamental para esse renascimento, surgido do oximoro dessa harmonia demoníaca que se conclui no momento em que a entrega nocturna se materializa: deixa que o sepulcro te masturbe.
É portanto uma viagem que tem como território esse mundo mas em que não há um objectivo final, ligado a uma instalação definitiva, porque a vida é o nosso destino e aparentemente já chegamos/sem nunca ter partido (p. 9). Se o poema se chama «Na rua em Daugavpils», portanto longe dessa origem portuguesa entre Lisboa e o norte, ao dizer que chegou sem nunca ter partido o que se conclui é que a viagem poética não implica uma mudança de território porque o chão em que assenta, e não se move, será o chão da linguagem, da língua, em que tudo é reconhecível e familiar, mesmo quando fisicamente se está longe. E talvez se possa aqui definir esse «movimento impróprio do mundo» como aquele que tenta afastar a poeta do seu chão, que será essa língua em que escreve, que faz parte de uma «Geografia secreta» em que a poeta usa os verbos que se apaixonam pela noite e os versos são lábios em ruína/parados na geografia secreta da pele.
Viagem entre Eros e Tanatos, o livro guia-nos por um mundo de imagens no limite da eclosão surreal, mas ao mesmo tempo nunca perdendo de vista a realidade, numa escrita que vai de encontro à pele críptica do papel, sem nunca deixar que a leitura se perca em labirintos sem sentido nem centro.
Nuno Júdice