Escrevo desde que consigo escrever, desde o momento em que escrevi uma história num caderno quadriculado, desenhei-lhe uma capa e coloquei na biblioteca da turma que ficava ao fundo da sala, ao lado dos contos do Hans Christian Andersen e do livro que contava a história dos três pastorinhos de Fátima. Não acredito que toda a criação é inata, mas a predisposição passará certamente como necessidade e é espontânea em algum momento. A regularidade dessa criação surgiu-me num contexto de maior capacidade de apreciação literária. Há uma dose de auto-valorização que surge quando pensamos atravessar crises pretensiosamente existencialistas, isso e o contacto com certos grupos de pessoas que me fizeram ler certos livros teve um peso bastante relevante. Se há uma vontade narcísica na criação? Claro que sim, basta conhecer pessoalmente alguns artistas, percebe-se logo isso. Saramago numa entrevista pouco antes de falecer dizia que o que o tinha feito escrever fora essencialmente a inveja. Será que isso realmente interessa, no final de tudo, o que raio motiva um bom artista a criar, desde que crie? Eu não acho.
Quando tinha quinze anos fiquei certo dia surpreendida por estar a ouvir um amigo recitar poemas d' “Horto de incêndio” de Al Berto e subitamente eu ver-me a repetir verso a verso os vários poemas que ele lia. Porque a poesia é a palavra musicada e a música é também, mas não exclusivamente, poesia espetacularizada, encenada, contextualizada com outros ornamentos mas, antes de tudo, grande parte da música que ouvimos é poesia e quando consigo cantar não sei quantas músicas de cor, fará todo o sentido saber recitar poemas, no seu todo ou parcialmente, devido à repetição da leitura. Porque a poesia para mim recebe o mesmo tratamento de uma música que ouço vezes sem conta porque me agrada, porque não se esgota na sua repetição, porque há sempre sensações novas. A diferença é que a poesia se restringe ao campo intrinsecamente linguístico (se é que isso seja alguma restrição, o que não me parece!). Nessa altura, para além do Horto de Incêndio, outro livro que me passava pelos olhos repetidamente era “A criança em ruínas” do José Luís Peixoto. Eu conhecia coisas mais clássicas, que pessoa interessada em poesia não começa por Fernando Pessoa? Não dá uma vista de olhos em Mário de Cesarinny, não lê Baudelaire ou Rimbaud? Ok, talvez nem toda a gente tenha o mesmo percurso, dependerá das tendências, como sempre tive este fascínio pelo lúgubre ou corrosivo seria mais natural começar com esses autores, mas penso que seja um caminho bastante clássico.
Entretanto, depois de me pôr a escrever armada em Rimbaud feminina sem tendências homossexuais nem particular apetência para as drogas (não, charros não contam), o caminho seguinte foi o da tentativa da publicação que hoje em dia é bem mais facilitado com a internet e os blogs. É sempre interessante juntar-se novas tecnologias a formas tão clássicas de expressão artística como a poesia, porque associamos a poesia a uma forma primitiva e secular de expressão, e é de facto a forma mais ancestral de entretenimento artístico e dificilmente se extinguirá agora, lamento ter que vos informar disto a vocês, defensores ferrenhos de blockbusters com estética mainstream. O próximo passo, depois de o da publicação virtual que deveria ser suficiente para uma geração tão tecnológica é o da tradicional edição em papel, da qual ninguém parece conseguir prescindir por mais subversiva que seja a sua visão em relação a isto. O resultado muitas vezes são editoras como a mítica Quasi, que durante tanto tempo foi a editora de referência na boca dos grupos de jovens escritores e leitores mas que, como o prestígio não paga contas, acabou por falir. Lamentavelmente.
O meu segundo livro foi editado por uma derivante da Quasi, a Atelier. E foi editado devido a prémios literários. Porque este post é essencialmente sobre Prémios Literários, embora ainda não tenhamos lá chegado e por esta altura já ninguém esteja a ler nada disto. Seja como for, os Prémios Literários são um incentivo importante, uma forma de confirmar que alguém nos lê e, eventualmente, confirmar que alguém gosta do que lê. Este tipo de actividade artística tem que ser assim mantido por uma elite cultural defensora de valores artísticos, por muito que esta designação possa soar pouco bonita ou agradável para pessoas que não gostam da palavra “elite” nem “intelectual” ou até para os mais radicais que não gostam da expressão “valores artísticos”. O gosto do júri é tão questionável como o gosto de outra pessoa qualquer. No entanto, considero os prémios literários de extrema importância para o incentivo da produção literária entre jovens escritores. O que é curioso é que, de uma maneira geral, os prémios impõem valores artísticos bastante ligados a uma estética que é mais ou menos vanguardista ao mesmo tempo que já é completamente vigente. Refiro-me aos trabalhos poéticos altamente relacionadas com correntes pós-surrealistas e neo-simbolistas baseadas nos grandes pilares da poesia portuguesa contemporânea (Al Berto, Herberto Helder, Nuno Júdice, António Ramos Rosa…). São os meus poetas de referência e são absolutamente geniais e apenas ligeiramente comparáveis a qualquer produção poética internacional, se me permitem o chauvinismo e o enveredar por ideologias clichés e melosas que nos designam por “país de poetas”. É mesmo verdade. Agora, estes senhores são todos poetas marcantes do século XX português e são totalmente contemporâneos na sua acepção mais precisa, concordo.
No entanto, a viragem tem de se começar a fazer. Todos os estilos artísticos oferecerem uma compreensível resistência ligada à definição de qualidade e de renovação. Porque na arte, a linha que separa o erro da inovação é por vezes tão ténue e é por vezes necessária tanta perspicácia, tanto entendimento para se precisar uma distinção. Picasso teve que provar que sabia desenhar flores em formato de representação pictórica da realidade antes de se pôr para lá a desproporcionar as formas de uma maneira totalmente voluntária e os júris de um prémio literário ou simplesmente as pessoas que analisam poesia têm que compreender se aquele escritor está enveredar por ali porque não tem a mínima noção do que está a fazer ou se pode perfeitamente manter-se no estilo vigente por conhecê-lo perfeitamente e dominá-lo, mas opta voluntariamente por não o fazer.
Sim, isto deveria ser uma reflexão de filosofia da arte com muito mais profundidade do que um post colocado num blog num início de tarde sem muito para fazer, mas o que eu acho é que os próprios prémios literários em Portugal estão a estabelecer expectativas em relação ao que é premiado. Por exemplo, eu não concorreria com um trabalho como o
Fast-culture a prémio literário nenhum que não o Prémio Literário José Luís Peixoto. Isto porque eu sabia que seria o único prémio a apostar nesta postura corrosiva face à produção poética e sem dúvida que José Mário Silva e José Luís Peixoto são os júris mais indicados. Lembro que a página do Diário de Notícias, DN Jovem onde toda esta jovem malta que escreve também participava, onde conheci vários colegas das letras com quem ainda hoje tenho contacto, era um sítio de fabulosas descobertas literárias. O DN Jovem acabou, a Quasi faliu. Temos que fazer alguma coisa! E o PLJLP parece ter essa vivacidade que é preciso ressuscitar, de alguma forma.