Vou deixar aqui o texto que escrevi para um grupo de intervenção cá da universidade. Porque por vezes é preciso algum panfeltismo. Enjoy!
«Já me aconteceu pôr umas quantas caloiras a chorar.» dizia um senhor 'doutor' que ainda não era licenciado a quem tratavam pela estranha nomenclatura religiosa de 'cardeal'. Estava numa reunião de comissão de praxe e as façanhas levadas a cabo por este estudante que há mais de 8 anos tentava licenciar-se em direito eram apreciadas e admiradas pelos alunos de um futuro terceiro ano que iam iniciar-se nas tarefas da praxe e recebiam instruções para tal. «Fazia-lhes praxe psicológica, contava piadas mas depois não as deixava rir» dizia o 'cardeal' com um ar profundo e experiente. E continuava com os seus feitos: «...e fiz uma aula fantasma em que fui tão lixado com umas alunas que elas desataram a chorar».
Assim tentava eu compreender os contornos desta tão proclamada 'tradição académica' que tanta gente faz questão de manter como se, afinal, o papel da juventude fosse 'manter as tradições', também podíamos manter aquela tradição da idade média de matar os ladrões à pedrada, já agora?
Mas os fatos são bonitos, confesso, ficam estéticos e dão aos rapazes um ar romântico. Claro que o romantismo se perde quando pedem aos seus “súbditos” que entoem algum tipo de cântico de teor obsceno, mas isso já serão segundas considerações...
A universidade é na sociedade um antro máximo de conhecimento e encontra-se no fim da escala evolutiva do percurso escolar. Seria de se esperar que este estatuto facultasse alguma responsabilidade que ultrapassasse um mero comportamento animalesco de teor hierárquico com nuances militares?
Bem, mas também estou a ser uma exagerada, não é verdade? Afinal, «só vai quem quer» mas continuam que «caso não vás, podem acontecer-te inúmeras situações de exclusão: não entras no bar universitário, não participas em coisas relacionadas com a academia...», há quem chegue a dizer que não entras no enterro da gata, etc. Ou seja, primeiro temos uma falsa brisa de liberdade e carácter facultativo que vem logo depois ser contrariada por uma completa ameaça que, para um miúdo ou miúda vindos do secundário meio perdidos com o tempo e o espaço, até pode ser tomada a sério. Pode ser tomada a sério caso o pobre pupilo não se recorde naquele instante que vive num Estado de Lei e que ninguém o pode, de facto, impedir de fazer seja o que for que condicione a sua liberdade enquanto cidadão. Claro que os jogos de intimidação colectiva e ostentação de poder pelo qual muitos dos alunos que decidem não participar na praxe são forçados a passar é uma opressão aberrante que só realça os piores aspectos desta suposta forma de integração.
Sim, porque «a praxe integra» quando não se tem maturidade para interagir fora de um esquema pré-definido que passa pela humilhação dos recém-chegados e a integração em códigos específicos e restritos do grupo, sujeitando-se a fazer tudo o que não vai e o que vai contra a sua própria natureza individual. Assim, os recém chegados estudantes que pensavam que se estavam apenas a inscrever num curso universitário descobrem que entraram também para um sistema alternativo de comportamento social.
Como posso ler num panfleto de um grupo de alunos da Universidade do Porto que se preocupam há mais tempo com estas questões: “Na realidade, existem mecanismos de coacção que, embora subtis, são suficientemente eficazes para que @s alun@s do primeiro ano se sintam “obrigad@s” a participar nos rituais praxistas. Ao mesmo tempo que @s praxistas afirmam que tod@s são livres de ir ou não à praxe, ameaçam quem quiser optar por não ir com a ostracização e a segregação académica. A escolha coloca-se assim entre ir à praxe e ser “da malta” ou não ir e ser “anti-praxe”, como se entre o preto e o branco não existisse uma infinidade de cores. A confusão afectiva d@s nov@s alun@s serve o mesmo objectivo, havendo uma oscilação constante entre momentos de camaradagem (nomeadamente nas festas) e de humilhação. Por outro lado, quando algum/a alun@ do primeiro ano mostra vontade de sair da praxe,@s que outrora @ humilharam transformam-se subitamente em seus/suas amig@s, situação que se reverterá num futuro próximo.” escrevem os antípodas (
http://www.antipodas.web.pt/ )
O imperativismo social é um aspecto sociológico presente em vários aspectos da nossa sociedade e acredito que a praxe seja apenas um deles, fazendo-nos muitas vezes seguir tendências por questões de mimetismo. Os mitos da ‘exclusão’ são autênticas balelas e só te cabe a ti gerir os teus relacionamentos da forma que bem o entenderes. Mas uma coisa é certa, se há pessoas que deixam de se relacionar contigo por tomares as tuas próprias decisões, será que são mesmo pessoas com quem valha a pena relacionares-te ou até no fundo isto será um filtro que te poderá dar a conhecer o carácter das pessoas à partida?